A situação está a descontrolar-se na província de Cabo Delgado, em Moçambique. “A população está abandonada à sua sorte. Vivem-se momentos de terror, o clima de medo é geral. Se não houver ajuda externa não vamos resolver esta situação”, queixa-se o bispo de Pemba, capital da província de Cabo Delgado, D. Luís Fernando, ao telefone com o Observador a partir da região. “Tivemos uma jovem senhora que apareceu aqui, fugindo dos ataques, com 12 crianças. Só duas das crianças são dela, as outras encontrou-as no mato a fugir dos ataques — e trouxe-as consigo”, exemplifica o bispo.

Há mais de dois anos que grupos armados, sobre os quais ainda pouco se sabe, têm semeado o terror na província de Cabo Delgado, em Moçambique. Desde 2017, pelo menos 350 pessoas morreram e mais de 150.000 foram afetadas pelos conflitos armados, tendo perdido bens e sido obrigadas a abandonar as suas casas — os dados são avançados pela Amnistia Internacional, mas há relatos locais que apontem para mais de 500 vítimas mortais. A estação Al Jazeera, citando dados da ONU, refere mesmo que pelo menos 100 mil pessoas já foram “deslocadas” das suas casas devido aos ataques.

Fotografia de uma loja em Mocimboa da Praia, tirada há duas semanas e meia, a 7 de março (@ ADRIEN BARBIER/AFP via Getty Images)

Esta semana, a situação agudizou-se: esta milícia armada, que se apresenta como uma organização terrorista de islamismo radical, tomou na segunda-feira o controlo de Mocimboa da Praia, vila com mais de 20 mil habitantes.

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Os rebeldes já abandonaram a localidade. Segundo fontes locais citadas pela Agência Lusa, saíram sem terem sido forçados a abandonar (versão que é disputada por algumas fontes do Governo do país) e deixaram um rasto de destruição — as autoridades moçambicanas reconhecem que em Mocimboa da Praia ficaram “sangue e corpos humanos” como vestígios e que houve “pessoas levadas para lugares incertos”, isto é, raptadas. Já esta quarta-feira houve uma nova ofensiva, com a milícia armada a tomar controlo da vila de Quissanga, que já antes tinha sofrido ataques e que antes dos conflitos tinha uma população estimada em mais de 35 mil habitantes.

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Sobre a segunda vila tomada pelos rebeldes na província de Cabo Delgado, na madrugada de esta quarta-feira, o órgão de comunicação local Mozz24horas refere que a vila foi atacada quando “Ministros da Defesa e Interior [respetivamente Jaime Bessa Neto e Amade Miquidade] estão na província”, que a população fugiu em massa — “alguns estão nas ilhas e outros no mar” — e que avistam-se à distância sinais de edifícios incendiados.

A agudização da violência esta semana deixa preocupados os moradores locais. O bispo de Pemba, D. Luís Fernando, resume a situação: “O que está acontecer em Quissanga [que fica a pouco mais de 100 km de Pemba] foi o mesmo que aconteceu em Mocimboa da Praia: tomaram a vila e os insurgentes estão a usar as roupas dos militares. Várias vezes tomaram, nas intervenções anteriores, armas e uniformes de militares. Desta vez pousaram no posto [da polícia] com armas e uniformes do Exército para dizer: já tomámos [o território] e já é nosso”, refere. Foi ainda içada uma bandeira associada a esta grupo terrorista na localidade.

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Uma diferença recente para o modus operandi destes grupos armados na região é o ataque a regiões urbanas e mais habitadas. Entre 2017 e 2019, a maioria dos ataques aconteceram em meios rurais e mais pequenos do distrito mas isso pode estar a mudar. Como lembrava no início da semana a Agência Lusa, “estes ataques têm acontecido sobretudo no meio rural, mas Mocimboa da Praia é um dos principais centros urbanos da região, sede de distrito, servido pela única estrada asfaltada que cruza a província e com um aeródromo apto a receber voos internacionais”.

Mocimboa da Praia não é uma paragem importante apenas pela centralidade que tem na província de Cabo Delgado: é também um ponto nevrálgico da região por motivos económicos. Apesar de ser uma província pobre, é rica em matérias-primas e recursos naturais: em 2010, como contava a BBC no início desta semana, foram descobertas “grandes reservas de gás natural” na província e a multinacional — com sede nos EUA — Exxon Mobil Corporation anunciou há menos de seis meses que planeava investir mais de 500 milhões de dólares na exploração dos recursos da região. E não é a única multinacional a procurar a extração de matérias-primas na região.

Não sei o que vai acontecer… estamos muito preocupados, Quissanga é a segunda vila que tomam [em três dias]. Até há um tempo só atacavam nas aldeias, longe das vilas. Agora como aumentaram o seu potencial, têm mais armamento, fardas, têm alimentação, têm carros, ficaram com mais poder de ação. Tememos muito pelas outras vilas, está toda a gente com medo, nas outras vilas pessoas começam a sair e começam a questionar-se que vila será a próxima [a ser atacada]”, conta ao Observador o bispo de Pemba.

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A Pemba, têm chegado pessoas vindas de Quissanga há várias semanas, apesar de a vila ter sido tomada apenas esta quarta-feira. “Muitos professores já tinham saído há um mês, profissionais de saúde também… porque a população já estava um pouco entregue à sua sorte. Agora, com a vila tomada, tudo piora. Em muitos lugares as autoridades já saíram por medo”, conta D. Luiz Fernando, que explica ainda que os moradores da localidade foram obrigados a rumar ou a Pimba ou à ilha de Ibo. A passagem a pé de Quissanga para Ibo, contudo, exige maré baixa, de outro modo só é possível percorrer por via marítimo — e alguns dos habitantes de Quissanga refugiaram-se no mato, algures entre as duas localidades, segundo a Agência Lusa.

O bispo de Pemba também não acredita que as autoridades moçambicanas e o Governo local tenham capacidade para responder e salvaguarda a segurança dos cidadãos. “Está provado que não”, começa por dizer ao Observador, acrescentando: “Isto acontece há dois anos e meio. Já pedimos que o Governo procure ajuda junto da ONU. O que está a ONU a fazer? Porque não ajuda aqui? Porque não vem? Porque não traz ajuda? Estamos aqui como que renegados. Agora então com esta situação do coronavírus, não sabemos onde nos fixar, com que situações lutar. São muitas coisas ao mesmo tempo, é um povo abandonado”, lamenta.

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Citado esta terça-feira pela estação Al Jaazera, o investigador da Amnistia Internacional para a região do Sudeste Africano, David Matshinhe, também deixou críticas ao Governo de Moçambique: “Não estamos a par de medidas tomadas para cuidar daqueles que tiveram de fugir de casa por causa dos ataques, na medida em que o Governo não reconhece o problema. As Organizações Não Governamentais [ONG ou NGO na sigla em idioma inglês] não podem atuar na zona de conflito. Há relatos de assassinatos de civis inocentes, acusados de ajudar os insurgentes. O Governo não quer que informação que o embarace seja tornada pública, porque trairá a fraqueza e incapacidade do Governo para controlar a situação”.

A identidade destas milícias armadas que vai ganhando poder na região é ainda alvo de discussão. Os vários grupos afirmam-se parte de uma milícia armada e fundamentalista islâmica e o Daesh reivindicou inclusivamente a ofensiva que culminou na tomada de Mocimboa da Praia, na passada segunda-feira, mas a associação destas milícias ao ISIS ou ao grupo terrorista da Somália Al Shabaab não é garantida. Não se conhecem líderes nem exigências concretas na região. “Não temos grande clareza sobre quem são [estes grupos armados]. Falou-se muito, há muitas teorias, mas não gostaria de acusar porque não sei. Sei que o nosso povo está a viver momentos de terror, com muito medo. Estamos inseguros e não sabemos muito bem o que fazer”, refere o bispo de Pemba.