A Associação de Produtores de Pão-de-Ló de Ovar (APPO), produto com identificação geográfica protegida e assim restringida ao município sob cerco sanitário devido à Covid-19, manifestou-se esta segunda-feira contra a proibição de fabrico e escoamento do respetivo stock.

Em declarações à Lusa, o presidente da instituição diz que em causa está a atividade de 12 fabricantes certificados que, nesse concelho do distrito de Aveiro, estão obrigados ao encerramento da sua atividade e deixaram de produzir milhares de pães-de-ló que, só na altura da Páscoa, eram expedidos para todo o país, frescos ou ultracongelados.

Não percebemos porque é que as padarias podem estar abertas e os supermercados podem vender bolos, bolachas, chocolates e tudo o que lá tinham antes, e nós estamos impedidos de fabricar um produto que, além de ser alimentar como os outros, é exclusivo de Ovar e tradicional”, afirma José Ferreira Sousa.

O problema é agravado pela circunstância de os fabricantes locais “terem parado a sua produção bem antes do dia 18 de março”, data em que se ativou o cerco em Ovar, e representarem maioritariamente “pequenas empresas familiares, o que contribui para a paralisação total económica do respetivo agregado”.

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O presidente da APPO lamenta, por isso, constatar que “o Gabinete de Apoio à Crise [da autarquia local] não autoriza a produção de pão-de-ló de Ovar”, pelo que “parece que, pela primeira vez, o ex-líbris da cidade não vai fazer parte da mesa de todos os que apreciam esta iguaria”.

Outras críticas prendem-se com o facto de, tanto no concelho como na generalidade do país, o estado de emergência permitir a venda e transporte de produto acabado dito de primeira necessidade – “sem obrigar os supermercados a venderem só batatas, carne e arroz, ou produtos de higiene” – e o mesmo critério não estar a ser adotado para os fabricantes de pão-de-ló.

José Ferreira Sousa remeteu à Lusa o pedido de um empresário alimentar local que requereu à câmara autorização para escoar mercadoria e a viu rejeitada.

A empresa Guida Gourmet dizia registar “uma redução drástica” de atividade, lembrava que já realizou uma quarentena profilática de 20 dias e solicitou autorização para fazer entregas no Grande Porto, Viseu e Lisboa como “única oportunidade de poder escoar o stock e não perder os clientes existentes“.

A resposta da autarquia foi contraditória: diz à empresa que “não lhe é permitido (…) escoar os bens produzidos”, mas diz também que “será aberto um corredor de escoamento de mercadorias de empresas, com produto final acabado à data do início da cerca sanitária municipal [18 de março], (…) destinado a todos os estabelecimentos comerciais e industriais não autorizados a laborar”.

Pedro Maia é um dos empresários que, na rede social Facebook, questiona essa argumentação: “Gostava que alguém me explicasse o objetivo operacional de abrir um cordão para escoamento de mercadorias e receção de matérias-primas [retidas no exterior] num município com a indústria parada há 21 dias, depois de terem permitido, e bem, a saída de produto acabado no fim do mês de março”.

Diretor de produção numa unidade industrial com cerca de 60 trabalhadores que aguardam desde sexta-feira resposta ao seu pedido de arranque de produção, o empresário duvida que em causa esteja apenas stock pronto à data do início do cerco. “Depois daqueles três dias de escoamento de produto acabado [em março], quem disser que tem mais para escoar, das duas uma: ou está a gerir à moda de 1990 ou está a produzir“, justifica.

Rui Catalão, fabricante de pão-de-ló e ex-presidente da APPO, concorda que “não se percebe bem o critério” e pretende beneficiar da exceção introduzida para restaurantes no decreto sobre o estado de calamidade pública em Ovar, pretendendo “reabrir a atividade na Páscoa em regime de take-away”, só para vender o doce regional aos clientes do concelho.

Se antes fabricava por esta altura “uns 1.500 pães-de-ló, dos quais 80 a 90% eram encomendas para todo o país“, agora antecipa, contudo, “apenas vendas residuais, porque, não podendo o produto seguir para os supermercados e padarias fora de Ovar, a população local também não vai comprar muito”, por saber confecionar o doce em casa.

Artur Duarte, vereador do PS no executivo camarário liderado pelo PSD, também já se manifestou nas redes sociais sobre o assunto, lembrando que “em todo o concelho é tradição da Páscoa saborear-se o pão-de-ló e as regueifas”.

Referindo que “a pandemia está a arrasar” os negócios dos pequenos produtores desses bens alimentares, o socialista propõe uma campanha que, “com o patrocínio da Câmara”, incentive as encomendas locais na atual quadra religiosa.

“Lançava-se a campanha ‘Um doce vareiro para todas as famílias’. (…) Com a vantagem de termos um presidente que até aparece no programa do [Manuel Luís] Goucha, as famílias inscreviam-se ou contactavam diretamente os produtores aderentes, para receber, por exemplo, um pão-de-ló ou uma regueifa por cada quatro pessoas do agregado”, sugere.

Adiantando que a entrega poderia ser feita ao domicílio, Artur Duarte deixa ainda uma recomendação mais específica: “A Câmara assegurava o pagamento de toda a ação e receberia das famílias não carenciadas, a título de donativo, (…) um valor mínimo de 20 euros, que seria depositado numa conta destinada a ser utilizada como fundo de apoio à recuperação do comércio local”.

O novo coronavírus responsável pela pandemia da Covid-19 foi detetado na China em dezembro de 2019 e já infetou mais de 1,2 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais mais de 68.000 morreram.

Em Portugal, o último balanço da Direção-Geral da Saúde indicava 11.278 infeções confirmadas. Desse universo de doentes, 295 morreram, 1.084 estão internados em hospitais, 75 recuperaram e os restantes convalescem em casa ou noutras instituições.

A 17 de março, o Governo declarou o estado de calamidade pública no concelho de Ovar, onde o cerco sanitário vigora até ao final do dia 17 de abril.