Mais de 100 mil casos de infeção pelo novo coronavírus, mas um número de mortes de 2.900 pessoas, o que corresponde uma taxa de letalidade bem menor do que a registada na maioria dos outros países. Uma morte por cada 33 milhões de habitantes. É este o mistério turco, que tem deixado perplexos médicos e cientistas, e que pode em parte ser explicado por fatores como a idade média jovem da população e o investimento nos cuidados de saúde — mas também por uma contagem diferenciada dos números ou até mesmo falta de transparência das autoridades.

A Turquia já ultrapassou em muito a China no número de casos de Covid-19 desde que o primeiro caso suspeito testou positivo, a 11 de março. Mas, sendo um dos países que não aplica medidas de confinamento total, não é claro como está a conseguir estancar a epidemia e a provocar até uma descida no número de casos e mortes por este novo coronavírus.

A União de Médicos Turcos (TTB na sigla original) e o Sindicato de Trabalhadores Sanitários (SES) apontam baterias ao governo de Recep Tayyip Erdoğan: “O governo não está a ser transparente com os dados”, acusa Bülent Nazim Yilmaz, da TTB, em declarações ao El País. “Não informa quais dos falecidos tinham patologias prévias, qual era a sua idade ou a distribuição geográfica. Só contabiliza como casos de Covid-19 os que dão positivo nos testes, mas os testes que utilizamos têm uma margem de erro de quase 40%. Ümit Dogan, do SES, concorda: “Os nossos associados dizem-nos que morre gente que, através das tomografias, vemos que está afeta por pneumonis graves, mas que dá negativo nos testes”.

E não só a fiabilidade dos testes é, de acordo com os peritos, duvidosa, como a capacidade de testagem do país é limitada. Em entrevista ao jornal independente Ahval, o presidente da TTB declarou que o país deveria já ter estar a testar 40 mil pessoas por dia, mas que, de acordo com o Ministério da Saúde turco, a média é de 20 mil testes por semana.

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Por considerar que os dados oficiais são insuficientes, a União de Médicos Turcos iniciou a sua própria contagem regional, que divulga no Twitter. “Os cidadãos têm de saber o que se passa nos seus bairros para entender a gravidade da situação”, afirmou Yilmaz ao site especializado em assuntos do Médio Oriente Al-Monitor.

As contas oficiais são também postas em causa por outros especialistas. Cengiz Zopluoğlu, da Universidade de Miami, e Abdullah Aydoğan, da Universidade de Columbia, concluíram com base nos dados oficiais de que os níveis de mortalidade gera subiram consideravelmente em meados de março, altura em que, oficialmente, Ancara garantia existirem apenas 92 infetados com o novo coronavírus no país. “Ao contrário dos políticos da oposição, não creio que seja uma mentira deliberada do governo”, analisou o economista Emre Deliveli, que compilou estes dados. “Penso antes que é uma forma conveniente de medir incorretamente o número de infetados”, ao ter apenas em conta os que testaram positivo, quando o nível de testagem é ainda baixo.

Análises semelhantes feitas aos dados da mortalidade, nomeadamente na cidade de Istambul, quer pelo El País, quer pelo The New York Times, apontam no mesmo sentido.

O governo turco garante que está a fazer a contagem oficial “de acordo com as normas da Organização Mundial da Saúde”, nas palavras do ministro da Saúde, Fahrettin Koca.

E outras razões para além das diferenças na testagem e contagem de casos podem ajudar a explicar uma baixa letalidade da Covid-19 na Turquia. Mehmet Ceyhan, professor de doenças infecciosas da Universidade de Hacettepe, apontou ao jornal espanhol que a idade média da população (31.5) é em muito inferior à de outros países mais abalados pela pandemia como Espanha ou Itália. “Como sabemos, a mortalidade é maior quanto maior for a idade do doente”, apontou.

Para além disso, o sistema de saúde no país tem-se modernizado e desenvolvido ao longo dos últimos anos, sobretudo devido ao facto de a Turquia ser um popular destino para turismo médico. Atualmente, há mais de 25 mil camas de cuidados intensivos em todo o país, que podem ser ampliadas para 40 mil.

Os problemas políticos do confinamento e as medidas para calar dissidentes

E o governo aponta ainda as medidas que tomou para combater a pandemia como responsáveis por este sucesso. Os voos internacionais estão suspensos, as escolhas fechadas, os ajuntamentos públicos são proibidos e os menores de 20 anos e maiores de 65 estão proibidos de sair de casa.

Contudo, o resto da população continua a poder circular livremente, embora tenham chegado a ser aplicadas quarentenas obrigatórias ao fim-de-semana para toda a população — com a primeira a provocar o caos em Istambul, visto ter sido anunciada com um dia de antecedência, o que levou à aglomeração de milhares de pessoas em lojas e supermercados nesse mesmo dia. O ministro da Administração Interna, Suleyman Soylu, entregou a sua carta de demissão na sequência da decisão, mas o Presidente Erdoğan não a aceitou.

Yilmaz, da União de Médicos Turcos, considera que estes confinamentos “podem ser benéficos”, mas que de nada servem se não forem aplicados com consistência: “Esta não é maneira de gerir uma pandemia”, declarou ao Al-Monitor.

Oficialmente, Erdoğan carrega na tecla do sucesso. Na noite desta segunda-feira, o Presidente anunciou que há sinais de esperança: “A Turquia está a deixar para trás este período conturbado graças à sua motivação, olhando para o futuro com mais confiança e cheia de esperança”, afirmou, de acordo com a agência estatal Anadolou.

O país está ainda a reforçar o apoio logístico que tem prestado a outros países, tendo já enviado ajuda para 57 nações.

Aquilo que Erdoğan prefere esconder, porém, são as medidas que tem tomado para reforçar o controlo sobre a opinião pública no país. A título de exemplo estão as medidas tomadas para lidar com o problema da Covid-19 nas prisões, com o governo a libertar um terço de todos os prisioneiros, incluindo alguns condenados por crimes graves. Contudo, dissidentes políticos e ativistas foram mantidos na prisão por estarem, na maioria, formalmente detidos e não presos, por ainda não terem sido submetidos a julgamento — numa medida denunciada pela Amnistia Internacional.

Ao mesmo tempo, a Repórteres Sem Fronteiras denunciou no início de abril, segundo o The Guardian, que sete jornalistas já foram detidos desde o início da pandemia, acusados de estar a “espalhar o pânico” e pelo menos 385 pessoas estão a ser investigadas por publicações que puseram nas redes sociais. Tudo isto no país onde há mais jornalistas presos em todo o mundo.