António (nome fictício, para “não ter problemas”) teve de se desenvencilhar depois de perder o emprego em plena pandemia. Trabalhava como freelancer na área de som em programas da RTP – um dos últimos o “Festival da Canção” –, mas foi informado em abril que só em setembro voltariam a precisar dele. “Os freelancers ficaram ‘agarrados’, não há trabalho suficiente para todos e tive de dar a volta”, conta. “Comecei a fazer uns biscates, a fazer canalização, a levantar paredes, a fazer pinturas. Uns amigos arranjaram-me estes trabalhos e tenho feito um pouco de tudo nas obras.”

O que ganha agora, 25 a 30€ por dia – menos de metade do que ganhava na televisão –, “dá para o quarto e para a comida”, confessa. “Lembrou-se tudo durante a quarentena de fazer obras em casa e mudar coisas, por isso trabalho não falta. Em setembro deve voltar tudo ao normal”, diz, referindo-se ao antigo trabalho. “É sempre duro [as obras], mas aguenta-se.” António diz ser apenas “mais um” dos muitos que por estes dias sentem os efeitos de uma vida profissional precária, os mesmo que entre Lisboa, Porto e Faro esta quinta-feira se manifestam por melhores condições de trabalho

André Carinha, técnico de som de 31 anos a trabalhar maioritariamente em teatro, foi outro dos muitos afetados da área da cultura que nestes meses ficaram sem ganhar um tostão.

“Tinha uma agenda muito fixe até novembro mas cancelaram-me tudo”, conta o responsável pela sonoplastia de várias peças e espectáculos ao vivo. “A minha sobrevivência ficou entregue aos meus pais, uma sorte e um privilégio, senão não ia conseguir, estava na rua.”

Pai de três filhos que não moram a tempo inteiro consigo – “por isso não posso pedir esse apoio” –, e com pensão de alimentos para pagar – fora as outras contas – teve de recorrer à ajuda dos seus próprios pais para sobreviver. “No primeiro mês recebi 215 euros de apoio [do Estado] e só de Segurança Social tinha 86 euros para pagar.”

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Quando percebeu que ia ficar sem trabalho, a 12 de Março, foi “um choque muito grande”, diz. “E continua a ser. Se tudo correr bem tenho um trabalho em Julho e outro para Setembro e eventualmente em Dezembro irei retomar a sonoplastia de uma peça.”

Até lá, tem um papel ativo no novo Movimento de Profissionais de Espectáculos e Eventos, que reúne trabalhadores da área audiovisual de Norte a Sul do país, e lhe dá algum alento nestes tempos difíceis.

“A malta está a organizar-se para ver se ganhamos algum destaque em termos de representatividade com o governo. Precisamos de um estatuto específico para a nossa área, que não temos. É uma luta antiga. Não podemos ter o estatuto de uma pessoa que trabalha o ano todo.”

A DJ e produtora musical brasileira Ágatha Barbosa, a viver em Lisboa há quatro anos, e conhecida pelo seu nome artístico Cigarra, também teve um “bloqueio completo de recursos” assim que a quarentena começou. “Afetou-me instantaneamente, começou tudo a ser cancelado”, conta a artista que em Lisboa costumava atuar em casas como o Musicbox, a Casa Independente ou As Damas. “Tudo o que estava agendado, entre 13 a 15 eventos, foi cancelado, tanto em Portugal como no resto da Europa.”

“Estou no meu ano de isenção e então na altura não podia pedir ajuda da Segurança Social”, esclarece. “Todas as iniciativas independentes foram mais rápidas”, diz Ágatha

Com uma filha e a morar numa casa com outros artistas em situação “ainda mais precária”, fez todos os pedidos de ajuda que conseguiu. “Desde a Gulbenkian, que logo percebi que não era para mim, que era para música clássica, à Câmara de Lisboa, que ainda não respondeu”, conta. “Estou no meu ano de isenção e então na altura não podia pedir ajuda da Segurança Social”, esclarece. “Todas as iniciativas independentes foram mais rápidas.”

Para comer teve a ajuda da companhia de teatro Palco 13, em Cascais, que se comprometeu durante a quarentena a levar cabazes de comida através da campanha NosSOS a “profissionais com intervenção direta ou indireta em espectáculos”. Os pedidos, que vão da Maia até ao Algarve, são feitos com “absoluta confidencialidade” e podem incluir fraldas ou ração para animais de estimação, em caso de necessidade.

“Sabemos que, por causa de espectáculos interrompidos, cancelados e suspensão de toda a atividade, há quem esteja a passar por dificuldades e os apoios à classe artística têm sido o que se sabe”, lê-se no site da companhia com 10 anos de vida. Os apoios começaram em Abril e foram-se, entretanto, alargando graças aos crescentes donativos.

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Por enquanto, ainda não pensam parar porque a situação parece longe do fim. “Não podemos parar”, confirmam no último post na página de Facebook. “São muitos os incentivos que mantêm a nosSOS ativa.” Um deles, talvez o principal, é a “ausência de uma estrutura governamental, que se mantém relutante à atribuição de condições e dignidade a todos os agentes culturais”. “Por isto e muito mais continuaremos a ajudar todos os lesados por esta guerra invisível e silenciosa.”

Outro dos apoios independentes mais visíveis – e a ajudar artistas como Ágatha Barbosa – é o Fundo de Apoio para Artistas de Lisboa, um dos primeiros a surgir em Portugal através da plataforma Go Fund Me. A campanha, criada em Março por Catarina Querido, da associação cultural Anjos70, reuniu até agora perto de três mil euros para distribuir por pessoas da cidade ligadas à cultura: “Músicos, DJs, atores, produtores, técnicos, staff de sala e bar”.

“[No início da pandemia] tive de cancelar todos os eventos e senti-me mal”, conta Catarina. “Comecei a perceber que isso seria um problema e vi que na América estavam a fazer este tipo de coisas [angariações]. Lá são mais recetivos, parece que em Portugal temos medo de dar, não sabemos para que estamos a contribuir, por isso o crowdfunding não subiu aos níveis que esperava.”

Qualquer artista podia candidatar-se ao fundo preenchendo um inquérito sobre a sua atividade e as quebras que teve. Como não conseguiu tantos donativos como esperava, o fundo dá primazia a quem está numa “situação mais fragilizada”, sublinha Catarina. “Pessoal que está mesmo a zeros.”

A própria associação Anjos70 também está em risco. “Nunca tivemos apoio de ninguém, sobrevivemos do nosso bar de apoio e das contas dos sócios. Desde que estamos fechados não temos conseguido pagar a renda, portanto posso dizer que estamos em risco, apesar de termos uma senhoria compreensiva. Havemos de dar a volta, a questão crucial é como e quando.”

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Com o Anjos70, Catarina candidatou-se a todos os apoios, do Fundo de Apoio às Artes do Ministério da Cultura ao Fundo da Gulbenkian e para os dois “não era elegível”. Da câmara de Lisboa ainda não obteve resposta. “Mas já nem estou a pensar em apoios. Vamos só tentar reinventarmo-nos e adaptarmo-nos à situação.”

Ágatha acredita que o apoio mais imediato vem de amigos. “[As pessoas] sobrevivem graças a amigos no geral”, confirma. “Não conseguem pagar o aluguer e vão morar para o quarto ou o sofá vago do amigo. Já existia isso muito antes.”

Sérgio Coragem, da companhia de teatro Auéééu, com um espectáculo previsto apenas para outubro, não se considera numa situação complicada, mas está a ajudar um colega da companhia em dificuldades. “Partilho casa e alimentos. Tento mostrar-me disponível quanto possível para ajudar amigos e pessoas que vivam dificuldades. Não sou rico, mas contento-me com muito pouco.”

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Dificuldades tem sido a palavra mais comum por estes dias. A cantora Márcia usou-a num post de Instagram o mês passado, embora se referisse a outros tempos: “Tive dificuldades para pagar a roupa, a renda, a comida que comia, tive até uma declaração de pobreza pela Segurança Social, que apesar disso me cobrava à mesma… e zero apoio para me conseguir manter, porque não tinha direitos.”

O objetivo era “mostrar empatia” com quem agora se encontra numa situação precária. “É muito complicado explicar às pessoas em geral, as pessoas não têm bem noção de como funciona”, começa.

“Temos um período de criação, de ensaios, montamos um espectáculo e esse trabalho de preparação que dura meses, até anos, só é ressarcido na altura de exibição, quando vai para a estrada. E é esse espaço que agora nos foi retirado.”

Apesar dos muitos movimentos de apoio à cultura, o mais evidente o Unidos Pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal, a empatia com a causa nem sempre é óbvia. “Os artistas e as equipas dos artistas, apesar de viverem dificuldades, nunca deixaram de trabalhar e contribuir sempre nos momentos difíceis. Por Pedrogão, por Moçambique…”, recorda Márcia. “Toda a gente foi trabalhar pro-bono. E quem está nos bastidores não tem a facilidade de se reinventar como está quase a ser perversamente proposto. É importante perceber que a classe artística e todas as equipas técnicas têm uma profissão. Não é um hobby e não é só útil à sociedade nos momentos críticos.”