A Terra é um planeta comum que orbita uma estrela comum numa galáxia como outra qualquer num lugar vulgar do universo. É neste mundo banal que reside um fenómeno que nunca observámos em qualquer outro sítio: a vida. E, no entanto, se a vida surgiu neste canto tão trivial do espaço, então é provável que ela exista pelo universo fora. Estranho mesmo é, sendo assim, nunca a termos encontrado.

Este é o paradoxo de Fermi, um desconcertante contrassenso entre a elevada probabilidade de haver vida fora da Terra e a falta de provas de que ela existe mesmo. Esta quinta-feira, no entanto, a NASA deu provas de que esta contradição não a atrapalha. Só inspira. E lançou a primeira missão que tem por objetivo principal a busca por sinais de vida extraterrestre extinta no passado do nosso vizinho Marte.

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Joana Neto-Lima, investigadora no Centro de Astrobiologia de Madrid, uma afiliada da NASA em Espanha, foi uma das cientistas responsáveis pela calibração do Sherloc — um instrumento montado do braço robótico do rover Perseverance que terá como missão detetar minerais, moléculas orgânicas e outras bioassinaturas que permitam à comunidade científica responder à mais desafiante das questões que Marte inspira: será já houve vida no Planeta Vermelho?

Joana Neto-Lima no Laboratório de Geologia Planetária do Centro de Astrobiologia de Madrid. Créditos: D.R.

As expetativas são muitas.

“Em astrobiologia, consideramos uma superfície planetária habitável quando tem presente três fatores: a existência de uma fonte de energia, a presença de água líquida e a presença dos elementos essenciais para o aparecimento e/ou manutenção de vida”, enumera Joana Neto-Lima.

Marte tem tudo isto. Recebe energia vinda do Sol, já teve água líquida abundante — atualmente apenas nas zonas polares e alguma água que condensa nas rochas mas evapora rapidamente, explica a astrobióloga — e tem seis elementos que, em Terra, são essenciais à vida: carbono, hidrogénio, nitrogénio, oxigénio, fósforo e enxofre.

Ou seja, Marte é considerado habitável. Mas há outras características que obrigam os cientistas a torcer o nariz à ideia de que, mesmo assim, tenha sido habitado em algum momento da sua existência. Em primeiro lugar, “carece de uma atmosfera e de um campo magnético que proteja qualquer forma de vida da radiação”. Em segundo, “a escassez de água líquida também é um ponto contra a capacidade de sobrevivência de vida conforme a conhecemos”.

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Depois há o problema de ser um planeta irrequieto, aponta Joana Neto-Lima:

“Ao longo do tempo, Marte tem sofrido bruscas mudanças do seu eixo planetário, o que significa que qualquer vida que possa ter surgido pode não ter tido tempo suficiente para evoluir e adaptar-se ao seu ambiente. Por este motivo quando se fala de potencial vida no Planeta Vermelho será sempre algo muito simples e primitivo, geralmente vestígios fossilizados”.

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Estes “vestígios fossilizados” são o alvo da nova missão da NASA. O Sherloc “analisa os minerais e as substâncias químicas” para desvendar as ligações entre os átomos que os compõem. O Pixl faz exatamente a mesma coisa, mas através de um método diferente: “Basicamente faz aquilo que vemos no CSI, identificar que substâncias estão ali. Isso ajuda a identificar bioassinaturas porque, com os estudos que fazemos na Terra, já sabemos como eles nos aparecem nesses instrumentos”, descreve a astrobióloga portuguesa.

No fundo, estes instrumentos vão agir como se fossem um geólogo. Em Terra, quando um geólogo olha para um mineral de carbonato, sabe a origem dele através da “assinatura espectroscópica” dele, isto é, das forças que ligam os átomos que o compõem. “Há minerais que só ocorrem na presença de água líquida a determinada temperatura, pressão e depois de um determinado período de tempo”, aponta Joana Neto-Lima.

Para colocar um espírito de geólogo dentro destes instrumentos foi preciso viajar até à Islândia e ao Deserto do Atacama, no Chile, para recolher amostras e levá-los para um laboratório. “Analisamos os minerais com raios-x, e espectroscopia. E apenas com isso conseguíamos distinguir de onde vinham e como se formaram”, acrescenta a cientista. Estas técnicas foram então ensinadas aos instrumentos a bordo do Perseverance.

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É assim, com um geólogo-robô a bordo de um rover, que a NASA quer matar uma curiosidade que mantém desde que Percival Lowell publicou um livro com uma teoria arrojada: os canais que observava na superfície do Planeta Vermelho seriam resultado do trabalho de uma civilização marciana. Foi em 1895. “A partir da publicação desse livro, Marte tornou-se o principal foco da imaginação e esforço da comunidade civil e cientifica”, conta Joana Neto-Lima.

Já houve desilusões desde então. A 7 de agosto de 1996, o então presidente norte-americano Bill Clinton anunciou a descoberta de formas de vida num fragmento de um meteorito marciano — o Allan Hills 84001, descoberto em dezembro de 1984 na Antártida. “O anúncio foi recebido por todos com entusiasmo. A descoberta que não estaríamos sozinhos no Universo trouxe manifestações bastante positivas do público em geral”, recorda Joana Neto-Lima.

Pouco depois, um passo atrás: “Descobriu-se que as estruturas encontradas no fragmento eram de origem terrestre, resultado da contaminação por microrganismos que aproveitaram a superfície do meteorito para sobreviver”.

Ora, uma contaminação deste género pode acontecer em missões como a que a NASA lançou esta quinta-feira: “Apesar de todo o processo de preparação de um rover ser altamente controlada e tudo ser limpo e esterilizado, nunca se pode garantir a 100% que não viajou nenhum microrganismo terrestre à boleia até Marte“. A boa notícia é que “através de análises do material genético desse microrganismo seria possível rastrear a sua origem terrestre”.

Ainda assim, e até este momento, não é possível afirmar que Marte não tem nem nunca teve vida. Mas também não se pode dizer o contrário. “Teremos de continuar a estudar Marte e, na minha humilde opinião, acho que só depois de começarmos a exploração humana do Planeta Vermelho é poderemos começar a falar com mais certezas“.

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Além disso, “a possibilidade de receber amostras de Marte e estudá-las na Terra com todos os nossos instrumentos” — uma possibilidade que está a ser desenvolvida pela NASA em parceria com a ESA — “será também uma boa forma de começarmos a ter dados melhores e traçar com mais detalhe a história da evolução do nosso vizinho planetário”.

E se, no fim de todo este esforço, Marte também resultar numa grande deceção? A esperança de encontrar vizinhança no Sistema Solar não se extingue, uma vez que há outros corpos planetários começaram a ser vistos como potenciais locais onde existam condições de habitabilidade.

Um deles é Europa, uma lua de Júpiter, a mais pequenas das quatro descobertas por Galileu Galilei e a sexta mais próxima do gigante gasoso. Tem o oceano gelado debaixo da superfície, outro oceano em estado líquido logo abaixo dele e níveis de hidrogénio e oxigénio semelhantes aos da Terra. Não há evidências diretas de que Europa tenha vida neste momento, mas estas características entusiasmam a comunidade científica na busca por vida extraterrestre neste mundo a 628 milhões de quilómetros da Terra.

Outro destino possível é Encélado, uma lua de Saturno que ejeta plumas de água salgada, grãos de areia, nitrogénio e moléculas orgânicas vindos de um possível oceano subterrâneo. As investigações feitas em torno deste satélite natural do Senhor dos Anéis do Sistema Solar sugerem detetou a presença de hidrogénio molecular, uma fonte de energia que pode ser metabolizada por determinados micróbios.