Título: Domingos Rebêlo
Autores: Sílvia Massa e Duarte Manuel Espírito Santo Melo
Editor: Museu Carlos Machado
Design: Alexandre Laranjeira
Páginas: 179, ilustradas
Preço: 20€

A capa da edição do Museu Carlos Machado

Depois de exposições monográficas de média duração dedicadas ao fotógrafo Francisco Afonso Chaves e ao escultor Canto da Maya — duas ilustríssimas figuras locais de projecção internacional — o Núcleo de Santa Bárbara do Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, completa por assim dizer o tríptico artístico micaelense da primeira metade do século XX com uma mostra de idêntica temporada sobre o pintor Domingos Rebêlo (1891-1975), cuja formação artística completada no Paris de 1907-13 — cruzando-se aí com Amadeo, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Dordio Gomes e Francis Smith — não o afastou dos motivos ilhéus; tornou-o, isso sim, o pintor clássico por excelência da sua terra e da sua gente.

Quando se entra no hall do museu, de que o pintor foi conservador desde 1933, logo o panorâmico quadro Indústria Micaelense (1934, óleo sobre tela, 1,56 x 3,25 m), inicialmente uma encomenda da Caixa Geral de Depósitos para a sua nova agência na cidade, nos oferece todo o esplendor do seu testemunho etnográfico, enquadrado pela paisagem insulana de mosaico verdejante em declive até ao limite do horizonte. Mas a obra de Rebêlo desdobra-se em trabalhos representativos como nenhuns outros da vivência açoriana, desde a diáspora à sua tão forte e singular religiosidade popular. Além dos muito conhecidos O Viático e Os Romeiros (ambos de 1919), Os Emigrantes (duas versões oficiais: 1926, 1929) e Tríptico do Natal (1926; onde também há um auto-retrato) ou dos espantosos Ceia do Romeiro (1925) e Graças antes da Refeição (1940), sem paralelo evidente na pintura portuguesa, Domingos Rebêlo deixou-nos quadros a óleo e aguarelas de motivos costeiros ou lagunares e um razoável lote de ilustrações para revistas de propaganda regionalista e livros, em especial os de Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), seu amigo desde os bancos de primeira escola, poeta de “Orpheu”, íntimo de Fernando Pessoa e de Cecília Meirelles, cujo retrato a óleo pintou em duas ocasiões, 1929 e 1947 (v. pp. 107 e 113).

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Com obra plástica e espólio dispersos pela linhagem de cinco filhos herdeiros e colecções privadas pulverizadas pelos Açores, continente, América do Norte e Brasil (onde expôs individualmente em 1920), Domingos Rebêlo é ainda hoje um pintor de referência à espera de um catalogue raisonée, ou catálogo comprovado, que dê conta de tudo ou quase tudo o que desenhou e pintou. A principal função desta exposição e respectivo catálogo é, pois, a de trazer a público a parte da sua herança estética que por compra, doação ou recente depósito de seus netos Pedro e Luís Rebêlo hoje se encontra no principal museu da sua terra natal, a ilha de São Miguel. Celebrando esse depósito de proveniência familiar e sublinhando-o como um exemplo de generosidade e bom sentido das coisas, aliás como havia feito para casos precedentes, o Museu aproveitou a efeméride dos 45 anos da morte do artista para honrar a sua memória, unindo-a — e muito bem — às de Afonso Chaves e Canto da Maya.

Como sucedeu com o catálogo dedicado a Canto da Maya (2019), a curadora Sílvia Massa não pôde desenvolver as extensas, morosas e certamente dispendiosas pesquisas “fora de portas” que seriam exigíveis a uma publicação capaz de rivalizar — sempre no melhor sentido, claro está — com o livro de finais de 2016 Domingos Rebêlo: Pintura (ed. Letras Lavadas, 160 pp. ilustradas e bilíngues) produzido pela equipa do denominado Projecto Domingos Rebêlo: seu neto Jorge, investigador e divulgador incansável, apoiado por Rosa Neves Simas e Susana Nunes Caldeira, com contributos de Tomaz Borba Vieira (82 anos, um discípulo de Domingos), Leonor Almeida Pereira e o pintor Urbano Resendes na escolha das reproduções, um livro que, merece ser dito, contou com o patrocínio da Câmara Municipal de Ponta Delgada, então presidida por José Manuel Bolieiro. Deste modo, entrelaçar estes dois livros e ver o que um tem e o que o outro não, ou o que faltando àquele este não alcançou obter, torna-se tarefa exigida a quem se interesse por Domingos Rebêlo, tanto mais que a exposição no Museu Carlos Machado e o catálogo que dela resultou não podem ter deixado de fazer idêntico exercício comparativo ou contrastivo.

A primeira surpresa são os três guaches-caricaturas que em Paris 1912 Domingos Rebêlo dedicou a cenas do Dom Quixote de Miguel de Cervantes (indicados na p. 120 como sendo nove), sua prestação no Salon des Humoristes realizado no Palais de Glace. Outra surpresa são os quadros que pintou na década de 1920 na Beira e em Viseu, onde passou temporada por motivos familiares, alguns dos quais apenas parecem sobreviver em reproduções fotográficas, como Dia de Feira: Viseu e Evocação da Beira, pinturas de 1922 (p. 122). Mas também as exposições que nos anos 1910-30 a cada verão de férias na ilha realiza em Ponta Delgada, sempre com motivos ilhéus e alguns retratos de encomenda, entre os quais o de Ernesto do Canto Faria e Maia (1913), infelizmente não exposto ou reproduzido, embora algo devesse ter sido dito acerca disso. Por outro lado, não fica claro se o belo Retrato de Salvador de Ugarte impresso na p. 30 é o “retrato de um espanhol” referido na cronologia (p. 119) como exibido na cidade micaelense em 1913 — o que denuncia ausência de documentação relevante ou falta de estudo dos catálogos ou avulsos dessas exposições, que o artista nunca descuidou a cada regresso. Do mesmo modo, haveria que averiguar se o quadro Pescadores de São Miguel, mostrado na SNBA em 1953 (p. 133), é ou não o admirável Pescadores de Rabo de Peixe (1937, óleo sobre tela, 2,46 x 1,14 m, de colecção particular). Se o belíssimo — e segundo — retrato de Laura Sofia Botelho de Gusmão Côrtes-Rodrigues, pertença do Museu, é de 1928 como afirma Jorge Rebêlo e a sua equipa (p. 86), ou não está efectivamente datado, como se indica na p. 111. Ou seja, há ainda, por certo, um enorme trabalho de pesquisa, cotejo, identificação e localização a fazer por Domingos Rebêlo.

Também me parece que Sílvia Massa negligenciou inadvertidamente a importância da campanha — num claro contexto histórico de afirmação regionalista — de replicação do enorme quadro O Viático (2,52 x 3,05 m…) adquirido pelo Marquês de Jácome Correia em exposição local de 1919 para oferecê-lo de imediato ao Museu Carlos Machado, para que, reduzido a menos de metade do tamanho original, fosse visto no ano seguinte na Sociedade Nacional de BelasArtes, de Lisboa, e no Real Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro (onde terá sido adquirida por emigrante açoriano endinheirado). Se o acto de pintura dessa cópia menor ficou registada em fotografias de Francisco Afonso Chaves (v. p. 121), tal significa indubitavelmente que houve um claro empenho da elite micaelense para que essa representação cerimoniosa da intensa religiosidade açórica fosse levada mundo afora. Ou simplesmente explicar que a viagem de Domingos Rebêlo ao Brasil em 1920 pode ter sido inspirada por outras de artistas distintos, como a de Malhoa em 1906 ou a de António Carneiro em 1914-15, procurando clientes entre a vasta colónia açoriana no Rio de Janeiro, um gesto que ele próprio repetiria três anos depois, com idêntico propósito dirigindo-se a emigrantes ilhéus, levando aos Estados Unidos da América quadros tão emblemáticos como A Procissão do Senhor Santo Cristo (fotografia, p. 123).

Também alguma hierarquia de importância cultural merecia ter sido melhor atendida: na secção “Ilustração de livros”, o destaque gráfico haveria de ter sido dado a O Milhafre (1927) ou a Quando o Mar Galgou a Terra (1940), duas obras centrais de Côrtes-Rodrigues, enquanto ao estudo para a capa de Ilhas do Infante de Guilherme de Moraes (1934) importaria justapor a versão final, bastante melhorada por sinal… (aliás, um livro com reedição recente, em 2019). E como fiz notar na crítica a Canto da Maya, mais do que uma bibliografia, em publicações desta natureza e finalidade importa disponibilizar uma antologia essencial de textos críticos, que no caso passaria, entre outros, por Vitorino Nemésio, J. Almeida Pavão, Emanuel Félix e António Valdemar. E quem diz textos críticos dirá também os apontamentos evocativos que ele escreveu sobre outros pintores, de que se registam apenas três exemplos facsimilados.

Mesmo quem considere A Festa de António Dacosta (1942) o grande ou melhor quadro açoriano do século XX, e eu considero-o, encontrará sem esforço em certos trabalhos de Domingos Rebêlo beleza e força suficientes para admirá-los também.

A exposição “Domingos Rebêlo” está patente no Museu Carlos Machado até 31 de Dezembro de 2021, de terça-feira a domingo, das 10 às 17h30 (horário de Verão).