Este episódio aconteceu com um treinador português no início de uma pré-temporada falando com a estrutura da comunicação e os responsáveis do clube. Hipótese de haver um câmara a viajar no autocarro da equipa? “Sim, acho bem”. Hipótese de fazer diretos parciais dos treinos à porta fechada? “Sim, acho bem”. Hipótese de recolher imagens no túnel de acesso aos balneários até à porta de entrada? “Sim, acho bem”. Ou seja, e em condições normais, estava tudo bem desde que não tivesse uma interferência direta no trabalho da equipa. Depois, começou a época. Ainda houve um ou dois momentos desses mas não se demorou a perceber que seria sol de pouca dura e com a anuência de todos. O futebol é cada vez mais uma indústria mas a mudança tem de ser faseada.

Em Inglaterra, e neste caso preciso do Tottenham, não houve propriamente opção de escolha depois do acordo estabelecido entre a administração do clube e a Amazon Prime Video para a realização do documentário “All or Nothing” (como já tinha acontecido, em Inglaterra com Manchester City ou Leeds United). E o próprio Mauricio Pochettino, que em 2019 conseguiu levar a equipa à final da Liga dos Campeões frente ao Liverpool, assumiu no plano interno que era algo que não gostava – sobretudo as câmaras no seu gabinete. Chegou José Mourinho e a ideia não foi propriamente alterada. “Não gosto da sensação de estar no Big Brother”, atirou o português. Mas um acordo é um acordo e, não se tratando da TV do clube, pouco ou nada há a fazer. Não foi por isso que os londrinos tiveram uma época abaixo do esperado mas também não foi algo que tenha acrescentado nada à equipa.

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Ainda assim, o produto final chegou. E mostrou de facto aquilo que algumas vezes se comenta nos bastidores mas que ali estava expresso em palavras e imagens. Um exemplo prático: a primeira conversa em privado entre José Mourinho e Dele Alli, no gabinete do técnico, já depois de ter dito à frente de todos os outros que percebera que o avançado era “um preguiçoso nos treinos”. “Tenho sempre de dizer o que penso, se calhar por dentro vais mandar-me à m****, mas tenho mesmo de dizer exatamente o que penso. Para mim, desde o início, não tenho dúvidas sobre o teu potencial, vi-te fazer jogos e coisas incríveis, mas sempre senti que tens altos e baixos e existe uma grande diferença entre um jogador que consegue ser consistente e um jogador que tem momentos. É o que faz a diferença entre um jogador de top e um jogador com grande potencial. Não sei o porquê mas olha, hoje tenho 56 e ontem tinha 20. O tempo voa. E espero que não te arrependas”, disse, com o jogador a acenar com a cabeça. “Não sou eu que te exijo mais, nem eu ninguém. Deves ser tu a exigir mais de ti”, completou.

Há muitos capítulos do “All or Nothing” que mostram o que é uma equipa, enquanto grupo que tem pontos mais altos, pontos baixos, guerras internas e aquele sentimento quase de família. É assim com o Tottenham, é assim com todas as equipas. Mas essa ideia de exigência é um dos pontos comuns de Mourinho para os spurs. O ponto que, segundo o técnico português, levou à altercação entre Lloris e Son que afinal chegou mesmo aos balneários. “Relativamente ao que aconteceu aqui… Não sei a história toda, só sei que ele queria que tu recuasses… Se fores um miúdo, alguém mimado, então é muito mau. Se levas da melhor maneira, então tornas-te mais forte. Isto não aconteceria há um ou dois meses, ou há um ou dois anos, aconteceu porque agora vocês exigem mais uns dos outros, sentem mais a responsabilidade de dar mais”, salientou José Mourinho.

Essa altercação entre o francês e o sul-coreano acabou por ser um dos pontos mais vistos e debatidos sobre todo o documentário e aconteceu no intervalo da receção ao Everton, que o Tottenham venceu por 1-0 num passo de relevo para chegar na última jornada ao sexto lugar da Premier League. O conjunto de Liverpool, orientado por Carlo Ancelotti e reforçado pelo colombiano James Rodríguez, era agora o adversário na estreia em 2020/21. E se antes Mourinho se mostrava satisfeito com o plantel, que perdeu Vertonghen e Walker-Peters mas ganhou Matt Doherty e Pierre-Émile Höjbjerg (além da permanência de Lo Celso), agora admite que continua a faltar ainda um avançado. “Estou muito contente com os jogadores que o clube já me deu. Não tivemos muito tempo para trabalhar desde que voltamos, depois foram para as seleções. São muitos problemas. Mas sim, quero e preciso de um avançado. Mas quero deixar claro que o clube, a estrutura acima de mim, sabe que preciso e também quer contratar. Se vamos conseguir? Acho que sim porque precisamos de uma equipa equilibrada”, disse.

20 anos depois da estreia pelo Benfica no Bessa, que se cumpre na semana que vem a sua “data redonda”, José Mourinho diz que continua igual. “Sou o mesmo no ADN e nos princípios. Sou o mesmo homem. Claro que existiu uma grande evolução no que diz respeito ao treino, na gestão dos jogadores, das equipas, de tudo o que está relacionado com o jogo. Mas sou o mesmo. A cor do cabelo mudou e tenho algumas rugas, mas sou o mesmo, com os mesmos princípios e a mesma paixão. Nada mudou. Adoro tudo o que está relacionado com este trabalho. A única coisa de que não gosto é perder. Odeio perder. Importância da época? Estou numa fase em que não me preocupo em mostrar algo ou provar algo a alguém, por isso diria que é uma época importante para o Tottenham e quero ser importante nesse sentido, para ajudar a alcançar coisas importantes», disse à Sky Sports. No entanto, o início acabou por ser um arranque em falso, com o Everton a ganhar em Londres por 1-0 e a quebrar o registo que o português tinha nas estreias, acima de todos os outros: nove vitórias e um empate.

Com Doherty e Höjbjerg de início, o Tottenham foi ainda assim surpreendido de início por um Everton que, além de contar com um James Rodríguez capaz de fazer uma melhor ligação meio-campo-ataque e nas transições rápidas, tomou conta do corredor central com dois reforços que não demoraram a mostrar credenciais: Allan e Doucouré (auxiliados por André Gomes). Son teve o primeiro remate com intenção da partida mas, à passagem do quarto de hora inicial, e num erro inexplicável de Ben Davies, Richarlison passou por Alderweireld em velocidade, fintou Lloris mas atirou por cima quando estava de baliza aberta (15′). O primeiro sinal de perigo estava deixado, com os londrinos a terem grandes dificuldades em levar a bola até às unidades ofensivas sem que os toffees já estivessem devidamente organizados no plano defensivo para anular o ataque contrário.

Era nas transições que o Tottenham conseguia fazer a diferença, como aconteceu pouco depois da meia hora com Son a conduzir uma saída rápida, a assistir Dele Alli em vez de Kane (que estaria em melhor posição mas em fora de jogo) e a ver o avançado rematar forte para grande intervenção de Pickford para canto (32′). Até ao intervalo, James Rodríguez ainda teve mais uma diagonal da direita para o centro com um remate em arco de pé esquerdo que saiu a rasar o poste de Lloris (37′) e Matt Doherty, após combinação com Harry Kane, rematou na área mais descaído para a direita para nova intervenção complicada de Pickford (42′). O intervalo chegava sem golos mas com o Tottenham a ter de fazer mais. A caminho do balneário, Mourinho foi olhando para trás, fez alguns gestos e parecia preparar-se para mexer na equipa. Como aconteceu. Mas com os resultados ao contrário.

Com a entrada de Sissoko para o lugar de Dele Alli, os londrinos quiseram recuperar o domínio do meio-campo ao mesmo tempo que apelavam a um maior jogo interior de Son e Lucas Moura com o apoio mais constante dos dois laterais, Doherty e Davies. No entanto, foi o Everton de Carlo Ancelotti que voltou a ter uma entrada mais forte aproveitando o enorme espaço que ia ficando entre setores no adversário, chegando mesmo ao golo na sequência de um livre lateral na esquerda marcado por Lucas Digne e desviado com um grande cabeceamento por Calvert-Lewin (55′). As “regras” do jogo mudavam e Mourinho regressava à fórmula inicial, lançando Bergwijn para o lugar de Winks para recuperar o 4x2x3x1 com que tinha iniciado a partida. No entanto, até foram os visitantes que ficaram mais próximos do segundo golo, com dois remates de Richarlison que rasaram o poste.