Este é um artigo impróprio para quem gosta demasiado de coisas doces. Difícil vai ser dizer que não a cada um destes doces regionais que tornam o Centro de Portugal mais rico e completo. As histórias, as receitas e os segredos das iguarias tradicionais: prepare-se para conhecer o melhor que a região tem para oferecer do litoral ao interior do país.

Primeiro, Aveiro

Não há como superar esta combinação vencedora: ovos e açúcar. Certo? Até Eça de Queiroz em “Os Maias” fez referência a este doce de origem conventual, mas fique a saber que a história dos ovos moles de Aveiro é bem mais antiga. Ora, uma vez, no século XVI, vários grupos de freiras de conventos femininos decidiram não desperdiçar a gema do ovo, visto que as claras eram utilizadas em várias tarefas domésticas, como engomar tecidos. À gema, acrescentaram açúcar e água, a receita foi apurada ao longo dos séculos e chega até nós como um dos ex-libris do distrito. Por influência conventual, a massa do doce é acondicionada diretamente em barricas de madeira ou de porcelana, envolta em hóstia, em pequenas formas que nos recordam a simbologia da cidade de Aveiro e a ligação ao mar, como peixes, conchas ou búzios. Trata-se de um doce reconhecido pela União Europeia, através da denominação de Indicação Geográfica Protegida, tal como o Pão de Ló de Ovar, um delicioso doce tradicional confecionado no concelho de Ovar, que se distingue pela massa cremosa de cor amarela leve e fofa designada de “ló e pela textura húmida.

No Centro (de Portugal) é que está a virtude

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Em Leiria, dois doces obrigatórios

Ao passar pela belíssima cidade de Leiria, existe uma iguaria que merece a nossa atenção. Por isso, estacionemos o carro e façamos o caminho até ao balcão de madeira mais próximo de qualquer pastelaria e, com um sorriso no rosto, digamos o seguinte: “Quero uma Brisa do Liz, por favor”. Gemas, água e amêndoas… não é excecional como os deliciosos doces tradicionais do Centro de Portugal conseguem ter uma composição de ingredientes tão simples? São várias as histórias que se contam sobre a verdadeira origem destes bolos redondos e brilhantes: a mais consensual atribui o sucesso desta receita às monjas do Convento de Sant’Ana. De consistência muito semelhante aos pudins, este bolo cozido em banho-maria é um dos símbolos da cidade, tal como os Canudos de Leiria, outro doce obrigatório nesta região. Reserve ainda algum espaço no estômago para provar o famoso pão-de-ló e as deliciosas castanhas doces de Figueiró dos Vinhos. São os dois doces confecionados pela Confeitaria Santa Luzia, respeitando as receitas originais deixadas pelas freiras que permaneceram no concelho até ao século XIX.

Ilustração: Teresa Dias Costa

Coimbra? Vai ser difícil provar tantas iguarias

Pastéis em forma de meia-lua ou estrela, com recheio de doce de ovos e de amêndoa pelada e ralada, diz-lhe algo? Falamos de um dos doces mais conhecidos da Beira Litoral, os famosos Pastéis de Santa Clara, uma guloseima que faz bem à alma e alegra qualquer dia cinzento. Tal como muitas iguarias regionais, estes pastéis doces não só contam histórias sobre o passado, como foram criados por freiras dedicadas. “Como assim”, pergunta o leitor? Pois bem, o Convento de Santa Clara de Coimbra, primeiríssimo local onde foram confecionados pela primeira vez, serviu de abrigo a várias figuras históricas portuguesas, como D. Inês de Castro e a Rainha Santa Isabel. À parte da receita original, à base de manteiga, farinha, amêndoa, água, açúcar e gemas (pois, claro), conta-se que o segredo do sucesso está na massa. O truque tem sobrevivido ao tempo, através da tradição oral: reza a lenda que as freiras esticavam de forma tão dedicada a massa exterior do pastel que era possível ler-se uma carta do outro lado da massa. A riqueza gastronómica do distrito de Coimbra é bem mais vasta: poderá encontrar outros exemplos de doçaria excecional como as Arrufadas de Coimbra e o Pudim das Clarissas em Coimbra. Fazendo um desvio até Montemor-o-Velho, pela sua felicidade não se esqueça de experimentar o Arroz Doce, que é feito com o fantástico arroz carolino do Baixo Mondego, e o Pastel de Tentúgal IGP, conhecido pela sua massa delicada e finíssima e recheio de doce de ovos. A história deste doce tradicional que em tempos foi conhecido por “pastéis do convento” tem origem no Convento da Nossa Senhora da Natividade, pelas mãos das irmãs da Ordem Carmelita que ali viveram entre 1565 e 1898. Foi a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, que as freiras em regime de clausura viram na comercialização deste doce uma nova forma de subsistência financeira e aqui é que a história fica interessante – como estavam em regime de clausura vendiam os doces através do único contacto com o exterior que lhes era permitido, através da roda dos enjeitados, uma abertura na porta principal dos conventos.

Ilustração: Teresa Dias Costa

Figueira da Foz merece a nossa atenção durante uma paragem pela região de Coimbra. Merece pela paisagem belíssima junto ao mar e merece porque é lá que originariamente são confecionadas as Brisas da Figueira, as Flores de Sal e as Enguias Doces (esta última sugestão trata-se de uma sobremesa mas não desvendamos mais), três doces típicos muito apreciados e com uma bonita apresentação.

Em Cantanhede, a especialidade regional a apontar no bloco de notas do seu telefone é o Bolo de Ançã, um bolo doce de textura leve e macia com forte tradição na época de Páscoa.. E porque há sempre espaço para mais um doce, sugerimos uma paragem rápida em Condeixa-a-Nova, porque é lá que é confecionado o ex-libris da gastronomia de Condeixa, a Escarpiada de Condeixa. Guarde algum apetite para mais duas sugestões imperdíveis, falamos das Nevadas de Penacova, um bolo redondo que faz lembrar um queque e é coberto por uma fina camada de açúcar muito branco, e por fim os Pastéis de Lorvão, confecionado à base de gemas e amêndoa moída. Sem fome? Peça para levar. Vai saber-lhe bem durante a ceia.

Viseu Dão-Lafões (perdoe-nos a descrição do Pastel)

Na região de Viseu Dão-Lafões, deixe-se deslumbrar pela paisagem grandiosa que abraça o distrito, entre aldeias que surpreendem pelo charme rural, montanhas carismáticas e atividades ao ar livre, é a doçaria regional (não fosse esse o tema deste artigo) que o fará realmente feliz. O imperdível Pastel de Vouzela merece ser apreciado pelo menos uma vez na vida: verá que assim que trincar a primeira camada de massa folhada muito fina, com uma saborosa camada de açúcar em pó, saberá do que falamos. Depois, começará a sentir o doce de ovos, cuidadosamente colocado no interior do pastel, que proporciona uma verdadeira experiência gastronómica. O leitor que nos perdoe a descrição detalhada deste doce — não queremos frustrá-lo se estiver a ler este artigo num domingo à noite chuvoso; esperamos antes ter conquistado a sua atenção. Sente-se com vontade de reunir ingredientes e passar uma tarde na cozinha? Fique a saber que existem várias receitas, mas diz-se que a composição original deste produto regional é secreta e apenas conhecida por quatro famílias da vila de Vouzela. Por via das dúvidas, arranque já para o Centro do país. No caminho, aproveite para conhecer outras especialidades regionais do distrito de Viseu Dão Lafões, como os Pastéis de Feijão do Patronato de Mangualde, ou o Bolo Podre (a denominação não é literal) de Castro Daire, um bolo de azeite único no país. No concelho de Viseu, existem três opções obrigatórias, a Castanha de Ovos, o Viriato e as Cavacas; em São Pedro do Sul, aconselhamos o Pão de Ló de Milho com Molho de Limão; e, por fim, a Pinha d’Ouro de Carregal do Sal. Confesse as calorias extra depois. Este é um pecado com perdão divino garantido.

Ilustração: Teresa Dias Costa

Médio Tejo. Vai conseguir resistir?

Vá comer Palha para Abrantes! Não estamos a mandá-lo para um sítio feio, trata-se de um conhecido ditado popular que, em bom português, significa ter demasiado apetite e falamos deste provérbio, porque no distrito do Médio Tejo existe um doce tradicional com esse nome: Palha de Abrantes. Também conhecido por “ouriço”, trata-se de um doce de ovos coberto com muitos fios de ovos queimados e estaladiços — que fazem lembrar os espinhos dos ouriços —, servido em forma de bolinha sobre obreia, em formas de papel frisado.. Segundo a tradição, esta iguaria, feita à base de ovos e açúcar, foi apelidada de “Palha de Abrantes”, porque o município foi em tempos bastante conhecida por ser um ponto de abastecimento de fardos de palha. Vá a Abrantes, mas não se esqueça de experimentar as célebres Tigeladas de Abrantes. Aconselhamos que faça um desvio em nome da investigação gastronómica: experimente os Coscoréis e os Cartuchos de Amêndoa de Cernache do Bonjardim; na Sertã, não coloque de lado os Bons Maridos; em Torres Novas, o Figo Seco, o Bolo de Cabeça e o Pastel de Feijão de Torres Novas também devem configurar nesta lista; assim como os Beija-me Depressa de Tomar. Antes de avançarmos para outras paragens, fique a saber que os Carmelitos de Fátima fazem parte dos produtos que integram a Rota Carmelita, um Caminho de Fátima entre Coimbra e o Santuário, e são uma deliciosa alternativa ao farnel dos peregrinos que caminham estes trilhos, tal como o Pão de Bolota. Caminhe, caminhe, só não queremos que fique sem energia. Não é doce, o Centro de Portugal?

Ilustração: Teresa Dias Costa

Oeste é sinónimo de doçura

Não podemos começar a falar de doces da região Oeste sem mencionar, primeiramente, a tão conhecida Maçã de Alcobaça – aquela fruta que nos aconchega sempre a alma, seja inverno ou verão. E também pode usufruir desta fruta em snacks saudáveis – não há como fugir, pois não? Depois, é importante continuar pela cidade e provar as cornucópias de Alcobaça, um doce que não deixa os apreciadores de doces de ovos indiferente. A base crocante faz toda a diferença neste doce, garantimos. Assim que partir para Caldas da Rainha, experimente as famosas cavacas das Caldas, doce típico da região. A história da sua confeção está ligada à freguesia de S. Gregório, o local onde nasceram as irmãs Rosalina e Gertrudes Carlota, que se viram obrigadas a abandonar o cargo de doceiras da Corte logo após o assassinato do Rei D. Carlos. Assim, estas doceiras voltaram à sua terra natal e começaram a vender estes doces na cidade e, desde então, tornaram-se a imagem das Caldas da Rainha.

Ainda nesta área, destaque para o Pudim de Ovos do Mosteiro de Alcobaça (vale a pena provar), outro pudim – desta vez é o Pudim de São Bernardo -, e por fim, mas (nunca) menos importante, a Barriga de Freira, um dos doces mais tradicionais do nosso país. Não ficamos por aqui – avisámos antecipadamente que esta é uma região que faz crescer água na boca. Anote: os pequenos Pastéis de Feijão de Torres Vedras com maravilhoso aroma a amêndoa e porque o pão de ló é sempre sinónimo de felicidade, dedicamos estas linhas finais ao cremoso Pão de Ló de Alfeizerão, que se desfaz na boca a cada garfada.

Ilustração: Teresa Dias Costa

Rumemos agora até Peniche, deliciemo-nos com as belas praias que nos apresenta, o belo peixe e… os belos Amigos de Peniche, uma iguaria que pode parecer uma homenagem àqueles que vieram de fora para libertar Portugal da ocupação Espanhola e que desembarcaram em Peniche para nos ajudar mas que, no fundo, é apenas uma partida da História. O que não é uma partida é o sabor da amêndoa neste doce – não o vão deixar indiferente. Sabe o que também não vai deixar o leitor indiferente? Os Esses de Peniche, uns biscoitos húmidos de amêndoa, que se desfazem lentamente na boca. Difícil vai ser comer apenas um.

É lá no alto que vivem os segredos. Eis a Serra da Estrela

O leitor é daqueles que privilegia a sobremesa nas refeições? Se sim, é cá dos nossos, e em nome desta irmandade, temos mais algumas sugestões para partilhar. A doçaria regional no distrito da Serra da Estrela é uma experiência que não vai querer perder. Doces intemporais de grande tradição, como as Sardinhas Doces de Trancoso, o Ouriço de Castanha e o Bolo Negro de Loriga, confecionados em Seia, ou os Doces de Amêndoa e a Flor de Escalhão de Figueira de Castelo Rodrigo fazem certamente parte dos livros de receitas das nossas avós e bisavós. Não é o caso do D. Sancho, o doce moderno da cidade da Guarda com nome monárquico que foi escolhido através de um questionário online; é um pastel recheado com creme de queijo Serra da Estrela, envolvido em massa folhada de centeio. Tornou-se representativo desta cidade em 2014. Ainda neste distrito, destacamos as Cavacas e o Fidalgo de Cherovia, ambos da Covilhã, e o Folar de Cereja de Ouro do Fundão.

Ilustração: Teresa Dias Costa

Por fim, a Beira Baixa

O último distrito deste roteiro gastronómico, a Beira Baixa, também não desilude. O doce mais típico de Proença-a-Nova, a afamada Tigelada, fará valer a pena os quilómetros de estrada. Noutros tempos, era apenas confecionada em dias de festa — já viu a nossa sorte, que com grande facilidade conseguimos deslocar-nos e apreciar, em qualquer altura do ano, este doce regional? Feita a partir de ovos, leite de cabra e mel, chama-se Tigelada devido ao caçoulo de barro, o recipiente alto onde se colocam lentamente os ingredientes, utilizado para cozinhar esta iguaria nos tradicionais fornos a lenha. Se planear uma visita à Aldeia Histórica de Idanha-a-Velha, valerá a pena provar uma das iguarias mais antigas desta área, os famosos Borrachões, uma das mais antigas e irresistíveis iguarias do concelho. Ora, como escrevemos no início do parágrafo, a Beira Baixa está repleta de receitas tradicionais deliciosas, é o caso das Papas de Carolo, uma sobremesa tipicamente beirã confecionada à base de milho, do Bolo Finto, dos Borrachinhos, das Broas de Mel, dos Esquecidos e dos Nógados de Vila Velha de Ródão. Destaque ainda para o Mel e para o Pudim de Vila de Rei. Difícil vai ser escolher, não é?

Ilustração: Teresa Dias Costa

Chegámos ao fim desta viagem cheia de sabor, com mais de cinquenta doces regionais que têm em comum três características que nos apaixonam no Centro de Portugal: tradição, amor e muito sabor. São muitos, sabemos; mas a boa notícia é que temos a vida inteira para prová-los. A viagem começa agora.

Saiba mais sobre este projeto em 
https://observador.pt/seccao/centro-de-portugal/