Antes eram as flores, as teclas, os dias de praia. Agora é a gravilha, os intervalos de escola violentos, as botas pretas. Antes era o psicadelismo. Agora é o rock. Há muitos “antes” e muitos “agoras” em Miguel Gomes.

Já foi Alex Chinaskee, que evoluiu para Chinaskee & Os Camponeses — banda composta por David Simões, aka Trovador Falcão (baixo), Luís José Tojo, aka SunKing (teclados), Ricardo Oliveira (bateria), Bernardo Ramos (guitarra, que não estava no início, mas logo apareceu) e que em conjunto com Miguel Gomes editaram, em 2017, o primeiro disco chamado Mal Me Queres e ainda um EP em junho de 2018, com o título Metro e Meio, aí também com a participação de Rodrigo Domingos (saxofone). Tudo isto desagua agora neste simples Chinaskee.

Além de Miguel Gomes, fazem parte desta formação por estes dias aparentemente definitiva Ricardo Oliveira, Bernardo Ramos e Inês Matos (guitarrista de Primeira Dama). E são eles que agora nos apresentam Bochechas, um carrossel de javardeira rock, como temos ouvido pouco, produzido por Filipe Sambado e misturado por Eduardo Vinhas, com selo da Revolve.

A capa e “Bochechas”, o novo álbum dos Chinaskee (Revolve)

No meio de tantos avanços, recuos, amizades que ficam e instrumentos que partem, Miguel Gomes — que roubou o nome artístico ao anti-herói de Charles Bukowski depois de ter comprado Música para Água Ardente numa Feira do Livro de Lisboa — fixou-se a uma ideia mais rockeira do que aquela que até aqui habitava no seu interior. Houve um certo concerto, no Vodafone Paredes de Coura de 2017, em que um certo copo a mais e um certo entusiasmo de tocar para tanta gente levaram a um certo descontrolo, no bom sentido, claro. Chinaskee & Os Camponeses largaram os óculos de sol e a delicadeza psicadélica e, de forma simples e direta, partiram aquilo tudo, imaginaram-se heróis do rock’n’roll, gente dos mortais à retaguarda e dos moshes. Gradualmente, essa ideia foi-se instalando em Miguel Gomes. Ainda assim, ficamos a saber: “A ideia inicial era fazer um disco meio Unknown Mortal Orchestra, com beats, muito reverb, voz distorcida e algo mais parecido com o Mal Me Queres“, explica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois, outro concerto. Um concerto no B.Leza, em Lisboa, ainda sem Inês Matos, antecedido pelo lançamento do single “Mobília” — tema que agora veste uma roupa mais pesada e que tem a companhia da Primeira Dama –, que marcou, de alguma forma, o renascimento de Chinaskee, a nova vida mais agressiva de Chinaskee, se assim quisermos. Ou seja: cá está o encontro com o público a relembrar que a vontade era mais My Bloody Valentine do que Unknown Mortal Orchestra. “Começou a fazer muito mais sentido tocar para fazer barulho e para nos divertirmos. As músicas já estavam mais ou menos escritas para o resto do disco e em vez de tentar tocá-las, comecei a tentar rasgar, partir, e à medida que ia mostrando à malta parece que estava tudo na mesma página. Sempre tive um gostinho por esta agressividade, pelo garage. E sim, ouvia Tame Impala e Mac DeMarco e queria fazer aquilo. Depois percebi que toda a gente fazia aquilo. Ainda hoje acho que o Mal Me Queres é um disco muito fixe e que faz muito sentido como ficou, só não me faz sentido continuar a fazer isso. Agora estou a diverti-me a fazer barulho”, admite Miguel Gomes.

[“Popular”:]

O primeiro confinamento desta pandemia serviu para fechar as canções e fazer as demos. E o desconfinamento serviu para ensaiar, alterar, afinar — no fundo, para pré-produzir o disco antes de rumarem aos Estúdios Namouche e gravarem este Bochechas em live take. Que fique claro: quando dissemos que este era um dos objetos mais rock que escutámos nos últimos tempos não era brincadeira nenhuma. O gás não acaba em Bochechas. “Popular” — canção de abertura com participação de Vaiapraia — é um hit agressivo próprio do corredor dos cacifos da escola secundária; “Mais Atenção” é um pedido de carinho bruto, à falta de iniciativa; “Desanimado” é uma bateria em ácidos que fala do exagero do umbiguismo; “Mobília” é a fofice em guitarras selvagens, e uma ode às poucas coisas que nunca nos falham na vida: vídeos de animais e respetivos tiques carinhosos.

Estava tudo bem. Mas quando começaram a pensar no disco — Miguel Gomes e Filipe Sambado — queriam que o resultado final tivesse os olhos pintados, isto é, que fosse contemporâneo, “moderno”. Então, toca de fazer um disco cheio de colaborações, assim como uma espécie de mixtape de hip hop, que por sua vez também é já coisa antiga, do tempo das cassetes e do gravar em fita:

“Quando o disco já estava feito, eu e o Sambado começámos a pensar como é que fazíamos um disco de rock dos noventas, um formato já amplamente explorado, soar moderno. Já tinha pensado que queria o Vaiapraia aos berros na ‘Popular’ há muito tempo. E que também queria a Bia Maria a cantar os refrães na ‘Edredom’. Isso já estava. Também usámos auto-tune nas músicas todas, o que já ajudou a dar esse toque moderno. Depois pensámos: espera lá, moderno é moderno é fazer um disco cheio de features. Vamos assumir isso. As músicas continuam a ser minhas, não são aqueles features em que a composição é feita a meias”, enquadra Chinaskee.

[“Desanimado”:]

Além de Bia Maria (que canta em “Edredom” e faz coros em mais um punhado de canções), e de Vaiapraia e Primeira Dama, também o produtor Filipe Sambado tem uma participação na última canção do disco: “Dragões”. Outro tema central — neste caso é mesmo o tema central — é a faixa-título: “Bochechas”. Até porque é das poucas que escapa à agressividade do disco. Pelo contrário, é uma canção profundamente melancólica, amorosa, afinal, são bochechas, não é? Bochechas são para apertar, bochechas são fofinhas. Não há como negar o paradoxo: algo doce sentado em violência, carinho, mas à bruta.

E o curioso é que esta foi a faixa escolhida para dividir o disco: “Foi 100% intencional. Demorámos muito tempo a fechar a tracklist, a banda toda dizia que a ‘Bochechas’ devia ser a última. Eu dizia que não e queria a ‘Mais Atenção’ no fim. Possivelmente, até depois da ‘Bochechas’, porque queria que o disco acabasse em grande, mas que ainda guardasse um extra, para que nos lembremos sempre que isto é um disco de rock. Estava muito nessa onda, do acalmar e depois um soco. Mas há uma noite em que estou com o Sambado em casa, a comer pastéis de bacalhau e arroz de ervilhas — um prato que faço muito bem — com o computador à frente, a arrastar os mixes de um lado para o outro. E lá chegámos à tracklist final e assim conseguimos mesmo partir o disco ao meio”.

[“Mobília”:]

E acrescenta mais umas palavras sobre a origem da canção “Bochechas”: “O disco foi escrito numa altura muito romântica e esse é um tema que sai daquele lote, mas que é importante. Ainda tínhamos a anterior formação e o disco já se chamava Bochechas, sempre com essa intenção de ser algo que faz lembrar coisas fofinhas num disco javardo.”

Sobra ainda mencionar um outro paradoxo, uma outra propositada contradição. Não são poucas as letras que falam do universo escolar, essas memórias por vezes traumáticas da adolescência, quando os miúdos são cruéis e sem escrúpulos. No fundo, como se o tempo de que as letras falam não correspondesse ao som que o disco tem: “Isso veio de de pensar nas coisas com as quais estou pouco confortável, ainda hoje. Encontrei várias histórias da minha infância que explicam isso muito bem. Consegui estar confortável ao falar disso e faz sentido o disco ser agressivo porque se relaciona com a ideia de raiva com o que se passava à minha volta na altura.” Uma raiva que nem sempre é inimiga, acrescentamos nós.