A tese de que a Covid-19 foi criada em laboratório na China não é recente. Donald Trump chegou defendê-la, Luc Montagnier, vencedor do Prémio Nobel da Medicina em 2008, também subscrevia esta hipótese e caracterizou o mercado de Wuhan (onde o vírus terá surgido) como “laboratório” que se especializava em vários “tipos de coronavírus”. Agora, um trabalho da autoria de Roland Wiesendanger, físico e professor da Universidade de Hamburgo que afirma estar “99,9% certo de que o novo coronavírus saiu de um laboratório”, vem reacender o debate noticiado por vários órgãos de comunicação alemães como o Der Spiegel ou a televisão pública alemã, NDR. No entanto, o trabalho não é consensual e vários pares consideram mesmo que “nem estudo deve ser chamado”, segundo a televisão ZDR. 

Isto num momento em que a delegação da Organização Mundial de Saúde concluiu a sua visita à China sem chegar a qualquer conclusão sobre a origem do novo coronavírus mas excluindo a hipótese de ter tido origem laboratorial. No entanto, o diretor da OMS, Thedros Ghebreyesus, disse que todas as hipóteses continuam em aberto, ao mesmo tempo que um governante chinês diz que o foco do estudo deve estar nos EUA e não em Wuhan.

neste domingo, Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional do Presidente dos EUA, Joe Biden, sublinhou que a China não disponibilizou “dados importantes suficientes” sobre onde nasceu e como se disseminou o coronavírus.

“Eles estão prestes a publicar um relatório sobre as origens da pandemia em Wuhan, na China, sobre o qual temos dúvidas, porque não acreditamos que a China tenha disponibilizado dados suficientes sobre as origens, sobre como a pandemia começou, na China, e depois em todo o mundo”, disse à CBS News.

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Covid-19: OMS recomenda estudo mais aprofundado das primeiras pistas sobre o vírus

O trabalho do físico alemão foi desenvolvido entre janeiro e dezembro de 2020 e, apesar de não “providenciar evidências estritamente científicas”, o autor admite que conseguiu recolher “provas consistentes” de que o vírus saiu de um laboratório. 

E há vários argumentos que Roland Wiesendanger esgrime para comprovar o seu ponto de vista. Primeiro aponta que ainda não foi detetada qualquer espécie intermediária que facilitasse a transmissão de agentes patogénicos do SARS-CoV-2 de morcegos para humanos. Sobre a origem animal, que a delegação da OMS não conseguiu identificar, frisa que os morcegos não eram vendidos no mercado de Wuhan.

Além disso, o autor sublinha que o Instituto de Virologia de Wuhan é um dos centro de pesquisa que mais informação tem recolhido sobre doenças de morcegos, chegando mesmo a investigar aqueles que estão em cavernas distantes no sul da China, o que levanta ainda mais desconfianças devido à proximidade do mercado e do instituto.

E chega mesmo a afirmar que há um grupo de cientistas no Instituto de Virologia de Wuhan que manipula geneticamente a categoria dos coronavírus com o objetivo de os tornar mais contagiosos, perigosos e mortíferos para os humanos. “Isso está documentado”, sinaliza. Os problemas significativos na segurança no centro de pesquisa também são um dos argumentos utilizados pelo estudo.

Roland Wiesendanger desconfia ainda que a primeira pessoa infetada com Covid-19 tenha sido uma cientista no Instituto de Wuhan e que as autoridades chinesas começaram mesmo a investigar este centro de pesquisa em outubro de 2019.

Para mais, avança que a Covid-19 é “surpreendentemente boa” a acoplar-se aos recetores das células, bem como a penetrá-las, sendo possível graças aos recetores da célula que se ligam com a clivagem da proteína do coronavírus. Este processo biológico é novo neste tipo de vírus — o que para o autor do estudo indica uma origem inorgânica e artificial do SARS-CoV-2.

Trabalho “não pode nem deve ser chamado de estudo”

Vários pares criticaram o trabalho desenvolvido por Roland Wiesendanger. Apontam que o estudo utiliza fontes questionáveis, como vídeos do YouTube, artigos da Wikipedia, informações partilhadas no Twitter e um artigo da revista “Focus”.

“É apenas uma compilação de documentos conhecidos e teorias sobre um possível acidente no laboratório”, descreve Volker Stollorz, editor-chefe da Science Media Center, ouvido pelo canal de televisão alemão ZDFheute, que acrescenta: “Não pode nem deve ser chamado de estudo”. A falta de fontes primárias é um dos pontos mais criticados do trabalho e Volker Stollorz também considera que não foi pensado para a “comunidade científica”, mas sim para “o público”. “Qualquer jornalista podia ter descoberto isso”, diz.

A cadeia de televisão alemã também consultou Björn Meyer, virologista do Instituto Pasteur, em Paris, que rebateu os argumentos de Roland Wiesendanger. Em primeiro lugar, aponta que só por não haver morcegos à venda do mercado de Wuhan não significa que a doença não se tenha propagado por esse motivo. Em segundo lugar, Meyer também rejeita a ideia de que o Instituto de Virologia tivesse como objetivo tornar os coronavírus mais perigosos — tinha sim o propósito de os estudar e analisar a transmissão da doença de animais para humanos. Sobre a informação do vírus penetrar mais facilmente nas células humanas, o virologista aponta que é de facto uma novidade, mas não há qualquer informação que indicie que esse efeito tenha sido criado em laboratório.

Universidade de Hamburgo envolta em polémica

A questão ainda ganhou mais controvérsia uma vez que o estudo foi publicado com o selo da Universidade de Hamburgo. Na conta pessoal do Twitter do instituto universitário o trabalho foi mesmo publicitado e colocado como pin tweet, obtendo assim mais destaque.

Uma ampla discussão como objetivo. O professor Roland Wiesendanger publicou um estudo no qual lança a luz sobre a origem da pandemia do novo coronavírus. O seu resultado: o número e quantidade de indícios sugerem um acidente de laboratório”, lê-se no tweet.

Ao Der Spiegel, no entanto, porta-voz da universidade mostrou-se mais cauteloso em avaliar o cariz do estudo, dizendo apenas que não exerce “qualquer censura sobre os objetos de pesquisa e os resultados dos seus cientistas”.

A origem do novo coronavírus tem estado envolta em polémica, principalmente após a visita da Organização da Mundial da Saúde (OMS) a Wuhan, que acabou por recolher poucas informações sobre o assunto. O diretor da OMS, Thedros Ghebreyesus, afirmou mesmo que todas as hipóteses continuam em aberto sobre a origem da vírus.

Wuhan. Investigação da OMS não identificou animal que transmitiu o SARS-CoV-2

A China rejeitou sempre a ideia de que teria criado o vírus em laboratório. Após a ida da OMS a Wuhan, o epidemiologista chefe chinês, Zeng Guang, considera que o país que deve ser o “foco” nos esforços de tentar desvendar a origem do vírus devem ser os Estados Unidos, ao que conta a CNN.

Nos últimos dias, a OMS também descartou a hipótese chinesa de que a origem do vírus tinha chegado através de alimentos congelados contaminados.