O poeta, editor e pintor norte-americano Lawrence Ferlinghetti, figura lendária da Geração Beat e cofundador da livraria e editora City Lights, de São Francisco, através da qual deu a conhecer a obra de Allen Ginsberg, Charles Bukowski, Samuel Bowles, Sam Shepard ou Antonin Artaud, morreu na segunda-feira aos 101 anos, divulgou esta terça o amigo Starr Sutherland. A causa da morte foi uma doença pulmonar, disse um dos filhos, Lorenzo Ferlinghetti, ao jornal Washington Post.

“Reconhecido poeta e artista norte-americano, intimamente ligado à Geração Beat e à defesa da liberdade de expressão nos Estados Unidos”, descreveu a editora Quetzal, que em 2019 publicou a tradução de Rapazinho, romance autobiográfico que Lawrence Ferlinghetti tinha escrito aos 99 anos.

“A Ferlinghetti cabe-lhe a glória de haver editado todos os escritores de referência da beat generation e de haver posto o espaço da sua livraria à disposição de leituras e eventos dos mesmos, com a concomitante projeção cultural”, anotou o escritor e alfarrabista Paulo da Costa Domingos no blogue Frenesi.

Nascido em Nova Iorque a 24 de março de 1919, ficou famoso por Coney Island of the Mind, que terá vendido mais de um milhão de exemplares, tornando-se o maior best-seller de sempre de um poeta americano vivo na segunda metade do século XX, regista a Encyclopedia Britannica. A primeira tradução portuguesa de Ferlinghetti tem data de 1972, por José Palla e Carmo, sob o título Como Eu Costumava Dizer, com chancela das Publicações Dom Quixote.

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Primeira tradução portuguesa de Ferlinghetti foi em 1972

Em reação à notícia da morte de Ferlinghetti, a editora independente americana McSweeney’s Publishing enalteceu no Twitter o papel de Ferlinghetti como editor. “Poucos fizeram tanto pela palavra escrita e quase ninguém teve uma vida tão cheia.” O escritor e editor mexicano Alberto Ruy-Sánchez recordou que foram amigos quando viveu em São Francisco e que Ferlinghetti lhe marcou a adolescência, ao lado de Kerouac e Ginsberg.

Ascendência portuguesa

Lawrence Mendes-Monsanto Ferlinghetti, de seu nome completo, tinha ascendência portuguesa por via materna. Era o mais novo de cinco filhos do italiano da Lombardia Carlo Ferling (mudou para Ferlinghetti ao chegar à América) e de judia sefardita Clemence Albertine Mendes-Monsanto.

“A mãe nascera em Providence, Rhode Island, de pais sefarditas que para ali emigraram vindos de Saint Thomas, Ilhas Virgens, onde a família, dona de plantações de açúcar, gozara longos anos de abastança até que uma queda do mercado em finais dos anos 1890 os atirou para a miséria”, lê-se nas primeiras páginas de Rapazinho. “A família descendia de foragidos que, para escapar à Inquisição em Espanha e Portugal, embarcaram para o Novo Mundo.”

Passou grande parte da infância em Estrasburgo, educado por uma tia, pois pouco antes de nascer perdeu o pai e logo a seguir a mãe foi internada num hospital psiquiátrico. De regresso aos EUA com a tia Emily, viveu em Long Island (Nova Iorque), passou por um orfanato e acabou entregue a uma família adotiva, os Bislands, de elevadas posses, mas sempre deu sinais de grande solidão.

Perfilhado por uma outra família, os Wilsons, tornou-se um aluno exemplar. Estudou jornalismo na Universidade da Carolina do Norte e chegou a ser jornalista desportivo no jornal académico The Daily Tar Heel e publicou contos na Carolina Magazine.

Mais tarde licenciou-se em literatura inglesa na Universidade de Columbia e fez um doutoramento na Sorbonne. Só no início da década de 50 se estabeleceu em São Francisco (Califórnia) como pintor e professor de francês, nesse ínterim cumprindo serviço militar na Marinha durante a II Guerra Mundial, o que o levou a França e ao Japão.

Casou-se em 1951 com Selden Kirby-Smith, de quem viria a divorciar-se ao fim de 25 anos, e teve dois filhos: Julie Sasser e Lorenzo. Em 1953 fundou em São Francisco, juntamente com Peter D. Martin, que se afastaria dois anos depois, a livraria City Lights — ainda existente, apesar da crise provocada pela pandemia da covid-19, e hoje considerada um lugar histórico por ter sido ali que a Geração Beat se encontrava, com Ginsberg (1926-1997) e Jack Kerouac (1922-1969) à cabeça, e por ter dado ao prelo os primeiros livros de poesia daqueles escritores.

Também casa editorial a partir de 1955, a City Lights começou por publicar um primeiro volume da coleção “Pocket Poets Series”, com o propósito de “agitar a dissidência a nível internacional”.

“Ferlinghetti foi fundamental na democratização da literatura americana ao criar a primeira livraria do país só com livros de capa mole e ao iniciar a tendência de divulgação junto do grande público das mais diversas obras a preços acessíveis”, dizia a mensagem publicada nesta terça-feira no site da livraria, referindo-se à coleção inaugural da editora City Lights como “força seminal que influenciou a poesia americana”.

O caso de “obscenidade” de Ginsberg

Figura de referência da Geração Beat, nunca seguiu a estética daqueles autores nem participou num estilo de vida pouco convencional. Terá até recusado os manuscritos dos agora clássicos Pela Estrada Fora, de Kerouac, e Festim Nu, de William S. Burroughs.

Será porém lembrado pelo atrevimento de publicar em 1956 Uivo e Outro Poemas (“Howl”), de Allen Ginsberg, obra com descrições amorais e sexuais que protagonizou uma apreensão policial e determinou detenções e o julgamento mediático de Ferlinghetti, que acabaria ilibado da acusação de “obscenidade”.

Depois do julgamento, abriu-se caminho na América à publicação de obras controversas como O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, e Trópico de Câncer, de Henry Miller, relembrou Los Angeles Times. O episódio foi adaptado ao grande ecrã em 2010 por Rob Epstein e Jeffrey Friedman no filme Uivo, com James Franco, que se estreou no Festival de Berlim.

Na biografia de 1983 Lawrence Ferlinghetti: Poet-At-Large o autor Larry Smith escreveu que a poesia de Ferlinghetti  tem o ponto de vista do homem da rua que fala de temas comuns e da experiência do quotidiano e acusa uma adesão os ritmos do jazz. Pouco considerado pela crítica, como escreveu o Los Angeles Times, granjeou admiradores entre jovens estudantes na década de 80, em sessões de leitura que o acolhiam como rock star. “Cometi o pecado de ser demasiado explícito”, comentou um dia acerca da fraca adesão do sistema literário aos seus poemas.

A Biblioteca Pública de São Francisco fê-lo primeiro “poeta laureado” da cidade, em 1998, incumbindo-o de redigir obra e de publicar os nomes dos nomeados nos anos seguintes. A Boca da Verdade, com tradução de André Ihan Lima e Isabelle Lima (1986) e A Poesia Como Arte Insurgente, traduzido por Inês Dias (2006), são os restantes livros de Ferlinghetti publicados até hoje em Portugal.