Em 2018, a investigadora Ashlie McIvor estava em Jeddah, na Arábia Saudita, com duas missões: pilotar drones para observar a fauna marinha da costa do mar Vermelho e recolher imagens aquáticas para observar o comportamento de raias e tubarões, dois dos maiores predadores marinhos. Essa era a linha de investigação do Mestrado que a escocesa de 25 anos concluiu em 2020, no departamento de Ciências do Mar da Universidade de Ciência e Tecnologia King Abdullah (KAUST).

“Queria comparar estes dois métodos para chegar a esses predadores, por serem duas abordagens de pesquisa não invasiva”, explica a bolseira de Doutoramento INPhINIT da Fundação “la Caixa”, que chegou a ajudar na identificação de derrames de petróleo através de imagens de drone. Agora, ela anda a estudar predadores marinhos e o impacto do lixo, sobretudo na ilha da Madeira, numa parceria com o polo local do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, uma das sete unidades desse centro de investigação científica, desenvolvimento tecnológico e inovação, em Portugal, que agrega também a Universidade de Coimbra, o Instituto Politécnico de Leiria, a Universidade de Lisboa, a Universidade Nova de Lisboa, o ISPA – Instituto Universitário e a Universidade de Évora.

Em 2018, ao mudar do Reino Unido para a Península Arábica, teve de enfrentar um “choque térmico”. Em terra, passou dos 13 graus da Escócia para os 45 graus nesse país árabe no deserto. Na água, passou dos sete graus do oceano atlântico, em Oban, na costa ocidental da Escócia – onde se licenciou na University of Highlands and Island –, para 25 os graus do Mar Vermelho. Esse era um bónus ímpar para uma bióloga marinha: poderia trabalhar mais horas dentro de água. “A única dificuldade que encontrei”, reflete a jovem natural de Edimburgo, “foram as restrições para ir ao terreno, porque o Mar Vermelho está pouco estudado e é difícil trabalhar sobre ele”. Porquê? “Pelo facto de ainda ter muita fauna e flora marinhas por descrever, na literatura académica. É preciso garantir que não se atropelam etapas científicas.”

A viver no Funchal desde janeiro, a investigadora vai pesquisar riscos e possibilidades de conservação de predadores como golfinhos, lobos-marinhos, raias, e até, “possivelmente, tubarões” – aqui com um pequeno tubarão tecelão (Carcharhinus brevipinna) na Arábia Saudita     © Collin Williams

A viver no Funchal desde janeiro, a investigadora vai centrar o trabalho na ilha da Madeira, pesquisando riscos e possibilidades de conservação de predadores como golfinhos, lobos-marinhos, raias, e até, “possivelmente, tubarões”. O que significa que, na prática (e apesar de ainda não ter feito saídas para o oceano), vai enfrentar um dilema semelhante ao que encontrou no Mar Vermelho.

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Na ilha da Madeira há um grande foco em baleias e golfinhos, sabemos onde estão e quantos existem – e isso é ótimo porque permite uma base importante para seguir em frente – mas dá-se o oposto em relação a tubarões e raias. Essa é uma das lacunas que espero também vir a preencher.”

Existe muita biodiversidade nas faixas continentais como as da Madeira, onde a maioria desses predadores marinhos se vão alimentar. Mas o facto de permanecerem muito perto da costa, torna-os muito vulneráveis à ação humana. “A pesca é uma fonte de rendimento na ilha e, infelizmente, existe esta interação que prejudica essas espécies. Queremos entender esta interação e tentar mudar alguns comportamentos: os locais de pesca, o equipamento, qual a altura do ano, para reduzir a interação humana”. Ou seja, “não é acabar com a pesca, mas abrir a porta para o diálogo para mitigar este impacto”, esclarece.

Ashlie quer “tentar compreender como essas espécies estão a interagir com o seu ecossistema e como são afetadas pelo ambiente e pelas pressões antropogénicas”. Ou seja, “o lixo marinho, tráfego marinho (como barcos de pesca, comerciais e de turismo) material de pesca descartado, detritos marinhos, como plástico, e como isso afeta a presença e a distribuição dos predadores marinhos da Madeira”. A ideia é fornecer dados “para se fazer melhores escolhas para ajudar a preservar estas espécies e a população”.

A estudante não vai começar do zero. “Há uma base científica muito sólida no MARE, com um excelente ambiente colaborativo, e eu tenho de apoiar os meus colegas e tenho de perceber como posso apoiá-los. É um privilégio”. Por exemplo, o estudo dela tem particular interesse pelo lobo-marinho (Monachus monachus), a foca mais rara do mundo, considerada em perigo crítico pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Já existem estudos realizados por biólogos do Instituto das Florestas e Conservação da Natureza (IFCN) desde 1988. Em 2014, avançou o projeto LIFE Madeira Lobo-marinho, para fazer ponto de situação mais rigoroso. E existe já uma Estratégia para a Conservação do Lobo-Marinho no Arquipélago da Madeira do IFCN, na Madeira.

A colocar uma sonda acústica numa raia da espécie Taeniura lymma, no Mar Vermelho, a fim de identificar o local de permanência e os padrões de movimento do animal

A maioria da população de lobos-marinhos vive no Mar Mediterrâneo e na Mauritânia. Na Madeira há apenas 21 indivíduos e são geneticamente diferentes dos parentes mediterrâneos. Sabe-se ainda pouco sobre o seu habitat. A cientista, que tem formação em mergulho e certificação de treino pessoal em sobrevivência no mar, quer contribuir para esse conhecimento mais aprofundado. “Eu vou estar a analisar os riscos a que os lobos-marinhos podem estar expostos. Se pudermos identificá-los, podemos fazer alguma coisa para mitigar essas ameaças e ajudá-los a sobreviver, a reproduzirem-se. E, com o tempo, equilibrar a população”.

No mapa tridimensional do arquipélago da Madeira que se vê no ecrã partilhado pela cientista, através de vídeochamada, percebe-se uma faixa continental estreita e que cai a pique para o fundo do mar. É para aí que ela aponta. É aí que está a maioria da população desses mamíferos: nas Ilhas Desertas e na ilha da Madeira. Vemos vários pontos coloridos ao redor da costa das ilhas. É por isso que ela não vai ter de navegar para longe da costa para estudá-los, tal como as outras espécies da pesquisa. “A ideia é usar drones para não os perturbar”, explica entusiasticamente a doutoranda, que é profissional na pilotagem desses equipamentos.

“Vamos também usar métodos de observação indireta do comportamento dos animais”, através de pesquisa com pescadores e até barcos de recreio que podem recolher informações. “Podemos ver onde estão os animais, onde está o lixo, cruzar informação e  ver como vão interagir e medir os riscos.”

Ashlie McIvor a bordo do RRS James Clark Ross, no Ártico (82° N), em 2018

Ashlie tem uma base sólida sobre oceanografia e predadores marinhos. Possui licença para pilotar barcos a motor e formação em primeiros socorros a mamíferos marinhos. Está a ler tudo o que pode sobre eles e o tipo de problemas que enfrentam, como “emaranhamento em redes e ingestão de plásticos”. Ela procura a melhor forma de obter respostas para todas as perguntas de pesquisa de uma forma não invasiva. Ao refletir sobre essa busca, a jovem bióloga dispara uma série de inquietações, aumentando, de repente, a velocidade do discurso.

Eu quero saber como os plásticos estão a afetar os mamíferos da Madeira: são plásticos de tamanho reduzido ou maiores? É por comerem plástico? Estão a ficar emaranhados neles? Estão a ficar magoados por se aproximarem demais? Como é que posso observar o que os lobos-marinhos comeram? Posso ver os excrementos para saber onde estiveram expostos ao plástico? Isto é, realmente muito difícil e muito complicado.”

Os lobos-marinhos mudam o pêlo uma vez por ano. Por isso, uma das possibilidades é perceber se poderá utilizar os componentes que encontrar no pêlo e relacioná-los com o regime alimentar. “Se souber que peixe andam a comer, posso constatar que esse peixe pode ter plástico.”

Ashlie foi formalmente contratada pelo polo do MARE na Madeira, através da Agência Regional para o Desenvolvimento da Investigação, Tecnologia e Inovação (ARDITI). Ela mostra no Google Maps o polo está localizado no campus da Universidade da Madeira e que o laboratório onde vai trabalhar fica na ala oeste. Será orientada cientificamente de forma coletiva pelos investigadores João Canning-Clode (MARE-Madeira), Ana Dinis (MARE-Madeira), Miguel Pais (MARE-Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa). E vai também trabalhar em colaboração com outros investigadores do laboratório e do próprio IFCN.

Conheceu a maior parte da equipa quando esteve na Madeira, pela primeira vez, em outubro do ano passado, para fazer um reconhecimento de terreno. Teve oportunidade de fazer uma espécie de batismo de barco nessas águas atlânticas madeirenses. Era dia 16 de outubro, a máxima era de 25 graus e dois dias antes de começar uma chuva intensa e rajadas fortes de vento no arquipélago. Foi um dia com condições meteorológicas de sorte. “Saímos no Zodiac [insuflável] para procurar baleias-piloto que têm marcadores de satélite que emitem sinais de GPS sempre que vêm à superfície e com informação em tempo quase-real onde estão.”

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Mas não foi a primeira vez dela no Atlântico. A escocesa está habituada a estudar o segundo maior oceano do mundo, que representa 20% da superfície terrestre. Além da Licenciatura em Oban, no assentamento do fiorde de Lorn, com uma biodiversidade de baleias,  golfinhos e espécies pequenas de tubarões, ela fez duas grandes expedições científicas. A primeira, uma viagem de 30 dias, no Royal Research Ship (RRS) para a Islândia, como parte da equipa Extended Ellett Line. A outra a bordo do RRS James Clark Ross para o Mar de Barents como parte do Prémio Ártico.

Ashlie chegou a querer ser veterinária e acabou a inspirar-se nos programas de televisão da National Geographic com a exploradora norte-americana Sylvia Earle, pioneira nas Ciências do Mar. Até porque sempre foi apaixonada pela água. “Fiz natação selvagem e competitiva, comecei a pescar, a velejar e fundei, em 2016, o clube de vela da minha universidade — UHI Wind and Wave Club”. Ganhou, em equipa, o Silver championship da modalidade e chegou a comprar um veleiro com os amigos.

Durante um par de anos, também em Oban, trabalhou numa pequena embarcação, de que era proprietária, onde levava pessoas para ver baleias, raias, pequenas espécies de tubarões e a fauna marinha local. “Também funcionava como barco de pesca, para mostrar a diversidade da costa.” Essa experiência, acabou por ser útil para a ciência. “Ajudei no programa de marcação escocesa de tubarões, mas também a marcar espécies em vias de extinção como as raias”, orgulha-se.

Entre 2018 e 2020, Ashlie concluiu o mestrado na Universidade de Ciência e Tecnologia King Abdullah (KAUST), na Arábia Saudita. Os 25 graus do mar Vermelho eram um bónus para a bióloga marinha: podia trabalhar mais horas dentro de água    © Morgan Bennett-Smith

Agora, se tudo progredir conforme o previsto, o trabalho de investigação de Ashlie McIvor na ilha da Madeira vai permitir apresentar um “mapa de densidade”, através de sistema de informação geográfica, que identifica onde estão as espécies de predadores marinhos e o lixo, sobrepondo essas informações com mapeamentos prévios, que, de forma cruzada, permitem identificar os riscos para a fauna marinha. “Podemos fazer isto ao longo do tempo e vai ser muito dinâmico, identificando se [o risco] é algo sazonal ou mensal.” Realça que vai ter “apenas 3 anos para fazê-lo” e que vai “tentar contribuir para criar dados que ajudem a conservar estas espécies de forma mais eficaz”.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Ashlie McIvor, atualmente a desenvolver trabalho no polo madeirense do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, foi uma dos 65 selecionados (11 em Portugal) – entre 1078 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. A investigadora recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto Understanding how the Occurrence of Deep-Diving Apex Predators is Impacted by Noise and Oceanographic Variability in a Remote Insular Habitat ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2021 encerraram a 25 de fevereiro.