Se há uns anos dissessem que o futuro da restauração poderia passar por restaurantes que, na prática, não existem, qualquer um ficaria, no mínimo, confuso. “Como assim não existem?”: desafiando os limites da metafísica e respondendo às limitações inerentes à pandemia (a limitação de pessoas, encerramentos, etc) surgiram, de facto, espaços que só existem no éter do digital, projetos como a nova Ameaça Vegetal, a mais recente aventura do chef Diogo Noronha, cozinheiro que até há bem pouco tempo liderava o lisboeta Pesca.

Pode parecer estranha, esta coisa de provar comida de um restaurante que não tem espaço físico para receber clientes (neste caso específico, porém, há mais que se lhe diga), mas não é isso que tira interesse à comida que se serve nesta Ameaça Vegetal. Comecemos pelo nome. Apesar do inusitado da escolha, é um espelho fiel da base conceptual do restaurante. Neste novo poiso de Diogo Noronha, o chef quis manter a linha gastronómica que mantém quase desde a adolescência, quando decidiu tornar-se vegano. De lá até agora enriqueceu experiência e palato, claro, com passagens em vários restaurantes estrelados, por exemplo, e nos vários projetos que liderou a título próprio (a Casa de Pasto, o Rio Maravilha ou mais recente Pesca) , mas também afinou aquilo que diz ser a dieta do futuro.

O chef Diogo Noronha é o responsável pelo novo Ameaça Vegetal, projeto inserido no coletivo FoodRiders. D.R.

“Este projeto é flexitariano, tem como uma base uma cozinha vegetal, mas não excluí totalmente a utilização de peixe ou carne, se bem que em muito menor quantidade”, explicou o chef numa apresentação à imprensa feita via Zoom. “Acreditamos que esta é uma dieta de futuro, que vem dar resposta aos desafios do momento que estamos a viver agora e daquilo que ainda virá. Estamos numa altura em que os produtos de origem animal vão começando a ser os que menos destaque têm num prato, passando o foco principal para outros ingredientes de base vegetal”, daí a premissa do projeto.

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Sempre valorizando, também, conceitos de sazonalidade e sustentabilidade na escolha da matéria prima — outra imagem de marca sua –, o chef propõe uma carta que é fiel ao trabalho que desenvolveu anteriormente mas agora num formato totalmente diferente. Os pratos refinados a puxar ao fine dining do anterior Pesca, por exemplo, deram lugar a descontraídas e divertidas sopas, sanduíches, saladas e outras sugestões pensadas de raiz para conseguirem “viajar” bem até à casa dos clientes. Pode por isso contar encontrar sugestões como a sanduíche de couve-flor assada no forno com creme de grão e harissa (as especiarias e influências de outras latitudes sempre foram do interesse de Diogo), servida com espinafres selvagens, cebola em pickle e vinagrete de tamarindo, tudo embrulhado numa foccacia de fermentação natural (9,15€); ou a sanduíche de bacalhau panado num pão de trigo e centeio com maionese de cebola caramelizada, furikake, folhas verdes de temporada e cenoura em conserva (9,50€).

A sanduíche de bacalhau frito da Ameaça Vegetal.

Na ementa também brilham sugestões apenas catalogadas como “Not Sandwiches”, categoria onde cabe basicamente de tudo um pouco, principalmente sugestões na onda da salada como a mistura de cenouras assadas e glaceadas com mel e cardamomo com malagueta chipotle, couve kale, avelã e “botarga” de ovo (11,50€); ou os cogumelos estufados com batata doce, grelos de nabiça salteados, caponata de berinjela e biscoito salgado de centeio e tomate (9,76€). No meio disto há ainda uma zona de sopas, onde encontra a saborosa de batata doce, gengibre e jalapeño com noodles de batata doce estaladiços (8,80€), e não podiam faltar também as sobremesas, claro, onde brilha o bolo de avelã e trigo sarraceno com mousse de chocolate e abacaxi em caldo de especiarias (6,71€).

FoodRiders (of the Storm) com olhos postos na bonança

Há uns bons anos os The Doors fizeram a canção “Riders on The Storm”, um sucesso que ainda hoje se vai ouvindo pelo éter — e não só. Estes “navegantes da tempestade”, numa tradução livre para português do título da canção, vêm a propósito do ambicioso projeto mais abrangente onde se insere esta Ameaça Vegetal, o coletivo FoodRiders. Criado por Damian Irizarry e Marta Fea, a dupla responsável pela famosa taqueria Lisboeta Pistola Y Corazón, este FoodRiders é um projeto de restauração, sim, mas vai além disso: pretende reunir vários “restaurantes digitais”, mas também tocar em áreas como as artes e a música.

O bolo de amora e gordura de pato comrábanos e rabanetes assados com cevada perolada, escabeche de laranja e sementes de mostarda é uma das ofertas da secção “not sandwiches”. Custa 9,15€. D.R.

Nascido em plena pandemia — a “tempestade”, para dar continuidade à metáfora — a FoodRiders estreou-se com o conceito gastronómico Las Gringas, de comida mexicana também em take-away e delivery (em parceria exclusiva com a plataforma Uber Eats), mas agora juntou à família esta Ameaça Vegetal. No mesmo encontro via Zoom, o próprio Damian explicou que o que estão a tentar construir “é uma espécie de restaurante híbrido, que mistura o mundo online e offline”. “Queremos usar a tecnologia mas não descurar o serviço, construir espaços como este que estão a ver [a cozinha dos FoodRiders, que mora na zona de Penha de França, em Lisboa], um ponto de pick-up e delivery de bairro”, mas também apostar numa food truck que estará pronta “no final do verão” e num restaurante físico que só no final do ano deverá abrir portas — se a pandemia assim o permitir.

Envolvido numa estética que cruza o imaginário do “hip-hop, punk e Bauhaus”, por exemplo, estes FoodRiders pretendem ir além da comida e associar-se a projetos musicais como a dupla de DJs Funkamente ou artesãos/artistas como a fotógrafa Nash Does Work, a oficina Fica ou a ceramistas norte-americana Haley Bernier, da Heir Ceramics. Tudo projetos que pretendem ir fundindo com o mundo da comida e vice-versa.

Jaime Carmona, o responsável por esta ligação entre áreas diferentes, explicou que o objetivo é “criar laços dentro da rede criativa de Lisboa” que pode materializar-se nas garrafas onde viajam os cocktails do grupo (todos criados pelo bartender José Pedro Oliveira) que têm fotos de artistas da “rede” como rótulo, por exemplo. Outro projeto nesta onda que têm neste momento a sair do forno é uma app onde se consegue perceber o sítio exato de onde vem cada produto utilizado na cozinha da FoodRiders que permitirá a qualquer um que a utilize entrar em contacto com o produtor em questão. “A app também vai permitir interligar a nossa comunidade, dar-te acesso a menus especiais, a eventos específicos, a visitas a parceiros e produtores ou até a espaços físicos, nossos, que de outra forma não terias acesso”, diz Damian.

Toda a gente deste projeto concorda que montar um negócio nestes moldes é um desafio, mas esta diversificação e a facilidade de não ter de sustentar a pesada estrutura de um restaurante tradicional pode vir a ser um ponto a favor rumo ao sucesso. Voltando aos Doors, não há como negar que estes “riders” nascidos na “storm” estão a apetrechar-se para sair dela com aquilo que poderá representar uma viragem importante na ideia daquilo que será a restauração pós-pandemia. Até lá é ir provando as delicias do chef Diogo e ficar atento à chegada do food truck — que não tarda andará por aí.