Feliciano Barreiras Duarte nunca foi visiting scholar da Universidade da Califórnia, em Berkeley — como escreveu em currículos públicos — mas o Ministério Público (MP) acredita que o antigo secretário-geral do PSD não sabia que não tinha esse estatuto. O procurador acredita que tudo não terá passado de um mal-entendido do antigo secretário-geral do PSD ao ler um documento enviado por uma professora daquela instituição. No despacho de arquivamento, ao qual o Observador teve acesso, o MP diz claramente que não existirem indícios de que o antigo deputado do PSD foi favorecido no seu doutoramento na Universidade Autónoma de Lisboa por ter esse estatuto nem que tenha entregado qualquer documento falso. O processo, em que Feliciano respondia pelo crime de falsificação de documento foi, assim, arquivado.

O despacho conta, no entanto, uma história, da qual já se conheciam muitos detalhes, que são agora confirmados. Feliciano Barreiras Duarte, como na altura noticiou o semanário Sol, escreveu em vários currículos que era visiting scholar. Terá sido um documento “aparentemente emitido pela Universidade de Berkeley“, de 30 de janeiro de 2009, que refere que o antigo deputado do PSD se encontrava “inscrito naquela Universidade com o estatuto de visiting scholar” que terá induzido Feliciano Barreiras Duarte em erro. O documento estava assinado por Deolinda Adão, professora naquela instituição, que não dá credibilidade a este comprovativo.

Deolinda Adão, quando ouvida pelo MP, diz que a assinatura digital do documento é sua, mas que “o documento não foi elaborado por si” (o MP considera “suficientemente indiciado” de que saiu do gabinete dela). A professora acrescenta que o mesmo tem “vários erros” e que “por regra, não emite em nome da Universidade onde é docente, documentos em português”. A professora admitiu — segundo consta do despacho do MP ao qual o Observador teve acesso e que ao início da tarde foi avançado pela Sábado — que chegou a comprometer-se, num almoço com Feliciano, de que ia pedir que fosse a Berkeley com aquele estatuto. Mas nada mais.

O mistério adensa-se quando Deolinda Adão explica ao MP que Feliciano “não tinha qualificações para ser visiting scholar” e que o documento em causa “apenas pode ser entendido como uma carta convite, que tem como objetivo obter visto para estadia nos EUA e iniciar o processo no departamento internacional da Universidade”. Acrescenta ainda que Feliciano Barreiras Duarte “nunca esteve em Berkeley nem lhe apresentou qualquer projeto de doutoramento“.

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Já Feliciano Barreiras Duarte diz que quando recebeu o documento — o mesmo que Deolinda Adão diz que só pode ser entendido como um mero convite e que não se lembra de ter escrito — “ficou convencido que tinha diligenciado com sucesso, pela sua inscrição na referida qualidade [de visiting scholar]”. Além disso, o antigo secretário-geral do PSD anexou ao processo um “conjunto de trabalhos atinentes à imigração e nacionalidade nos EUA” (o que não significa que os tenha entrega em forma de projeto de doutoramento).

Resumindo: Deolinda Adão disse que, no limite, o documento só podia ser lido uma carta-convite; Feliciano entendeu que tinha sido escolhido e aceite. O Ministério Público tomou como boa a versão de Feliciano: “Tal documento foi entendido pelo arguido em face do modo como está redigido, como confirmativo da atribuição da qualidade de visiting scholar em Berkeley apesar de tal não corresponder à realidade.”

Estatuto foi ou não importante para Feliciano dispensar parte letiva da UAL?

Para perceber se, de facto, havia crime, o Ministério Público tentou ainda perceber a importância do estatuto de visiting scholar para Feliciano Barreiras Duarte ter sido aceite como doutorando na Universidade Autónoma de Lisboa, bem como se isto tinha sido essencial para a dispensa da componente letiva. Isto porque, como já era do domínio público nas várias notícias sobre o assunto de 2018, Feliciano Barreiras Duarte foi dispensado da frequência de aulas do doutoramento por ser visiting scholar na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Feliciano Barreiras Duarte chamou várias testemunhas que confirmaram que este seria aceite na UAL mesmo sem ser visiting scholar na Universidade da Califórnia, sendo duas delas dois membros do júri da sua tese de mestrado: a ex-ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, e o antigo vice-presidente do PSD, Diogo Leite Campos, que defendem até que isso dispensaria . Já “o professor Mota Pinto”, também indicado por Feliciano, terá dito o contrário.

O Ministério Público — tendo por base as testemunhas indicadas pelo arguido — concluiu então que a qualidade de visting scholar “não foi determinante da concessão do estatuto de doutorando pela UAL”. O procurador assumiu ainda que não conseguiu provas complementares, pois diz que não foi possível a “obtenção da decisão do Conselho Científico da UAL” e que do parecer da Comissão Científica “nada se retira a tal propósito [de que só foi aceite por ser visiting scholar]”.

Mas se fica claro que Feliciano Barreiras Duarte seria sempre aceite como doutorando na UAL e que, de acordo com Diogo Leite Campos e Constança Urbano de Sousa, até dispensaria a componente letiva, o MP ignora no despacho a decisão da Comissão Científica de Direito, que deliberou que teria de frequentar as aulas para continuar a ser doutorando.

O despacho de arquivamento refere apenas a consequência, dizendo que Feliciano Barreiras Duarte renunciou “unilateralmente à condição de doutorando de direito na UAL” quando teve conhecimento de um parecer da Comissão Científica da UAL de 2018.

É preciso puxar a fita atrás. Como o Observador noticiou no dia 17 de abril de 2018, a Comissão Científica de Diretivo da UAL deliberou que o estatuto de “visiting scholar” foi “um fator determinante” para Feliciano Barreiras Duarte ter dispensado a frequência das aulas de doutoramento. Na deliberação à qual o Observador teve acesso a Comissão Científica de Direito afirmava o seguinte: “Sem menção do candidato relativa ao estatuto de ‘visiting scholar‘ não tem cabimento a dispensa do ciclo de estudos.”

Comissão decide que Feliciano tem de voltar às aulas e acusa-o de “induzir em erro” a universidade

A decisão — que obrigava Feliciano a voltar às aulas — necessitava depois de ser ratificada, em maio desse ano, pelo Conselho Científico da UAL. O que aconteceu foi que o antigo deputado do PSD não esperou por essa decisão e abdicou de ser doutorando antes que o obrigassem a fazer a componente letiva. A 25 de maio desse ano, o diretor de administração escolar da Universidade Autónoma, Reginaldo de Almeida, explicou isso mesmo em declarações à Agência Lusa: “Ele antecipou-se, no sentido de escrever uma carta às entidades competentes – à universidade e ao presidente do Conselho Científico – e consequentemente desistiu da sua condição de doutorando na Universidade Autónoma. O Conselho Científico limitou-se a constatar essa mesma renúncia e arquivou o processo”.

Numa semana horribilis para Feliciano Barreiras Duarte, o então secretário-geral do PSD foi acusado de falsificar o currículo e foi ainda noticiado, pelo Observador, de que morava em Lisboa, mas recebia do Parlamento como se vivesse a 83 quilómetros. Tudo isto culminou na demissão de Feliciano Barreiras Duarte como homem do aparelho do PSD de Rui Rio. Foi então sucedido no cargo pelo atual secretário-geral, José Silvano.