Uma criativa a transbordar de entusiasmo e novidade — foi com esta Vera Fernandes, a autodidata que, em 2016, criou uma pequena marca de roupa chamada Buzina, que falamos ao telefone em vésperas da transmissão do desfile, agendada para sábado, ao final da tarde. “Viste o que elas tinham calçado?”, exclamou, abrindo um atalho dentro da conversa que ainda mal tinha começado.

Contudo, é perfeitamente possível descobrir “Cloud” (título ligeiramente genérico) a partir dos socos acolchoados que Vera encomendou a um artesão dos arredores de Braga. De certa forma, quase tudo foi encomendado ao folclore e ao trajar tradicional do Baixo Minho. “Fiz parte de um grupo de folclore durante dez anos quando era mais nova. A Clarice [coleção lançada em outubro do ano passado] já tinha uns espartilhos e umas referências, mas queria muito, e há muito tempo, explorar isto”, explica.

© Ugo Camera

Explorar, ponto e vírgula. Vera é cautelosa a creditar a cultura regional com que cresceu — apropriações e descontextualizações acarretam polémicas indesejadas, Tory Burch que o diga, e indiciam falta de respeito pelo património. “O mote foi esse: pegar numa coisa que conheço tão bem, e que até me remete um bocadinho para o barroco, e acabar por perceber que tinha tudo a ver com a Buzina — os socos, os volumes, as algibeiras das mulheres, os aventais”.

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O color block destacou-se no fundo neutro do Pátio da Galé. Em homenagem às próprias mulheres minhotas, as cores foram emprestadas pelo movimento sufragista — roxo, verde e branco. Vera voltou a brincar com os volumes, ora despendendo metros de tecido (em tempos, houve quem chamasse aos seus vestidos sacos de batatas), ora criando silhuetas estruturadas através de acolchoados, os mesmos aplicados pelo tamanqueiro sobre as socas de madeira. “Não foi fácil explicar-lhe que era algo para apresentar na ModaLisboa. No início, achou que ia desvirtuar o trabalho dele. Mas quando viu o resultado final ficou encantado”, recorda Vera, que ainda digere a ideia de poder ter o calçado à venda.

Quanto ao formato digital da apresentação, gravada com uma semana de antecedência, a criadora reconhece que abriu a porta a novas possibilidades. No dia da transmissão do desfile, a marca lançou uma curta-metragem documental, realizada Gustavo Imigrante, que mostra os bastidores da coleção, em particular do momento de apresentá-la ao mundo. Neste palco que é a ModaLisboa, a Buzina quer assumir-se como uma marca capaz de incorporar os valores da passerelle — criar um espetáculo de moda, sem comprometer a vestibilidade da roupa.

Corais, testes rápidos e os beijos que tardam

Pensar numa jovem criadora que há muito encontrou o seu lugar no mercado e uma linguagem coerente para o seu trabalho leva-nos até Ana Duarte. O sportswear corre no sangue da marca criada em 2015 e que tem hoje trejeitos tão próprios como qualquer veterano da moda portuguesa. A natureza e as viagens (ainda que, neste momento, feitas através de pesquisa à distância) voltaram a ser terreno fértil para a criatividade da jovem designer, que mergulhou à descoberta da Grande Barreira de Coral australiana.

Nas peças, Duarte exibiu quer as cores exuberantes destas estruturas vivas, quer a palidez que reveste os corais após a sua morte, criando autênticas cidades brancas submersas. Encaixes ondeantes e volumes assimétricos criados por malhas grossas, transportam-nos para o postal longínquo, ao mesmo tempo que piscam o olho à causa ambiental. Aos materiais técnicos, Ana adicionou algodão reciclado e ainda plásticos provenientes do mar, transformados em fibra têxtil pela Seaqual Initiative.

Duarte © Ugo Camera

Uma consciência partilhada por Valentim Quaresma. No mesmo dia, o criador voltou a apresentar o resultado de um processo de upcycling, ao transformar tecidos antigos em novas peças, recorrendo a uma película hidrossolúvel, técnica que lhe permitiu, por exemplo, reutilizar desperdício de fios de seda.

“Metamorfose” foi o título escolhido para a coleção. Não só os materiais se reconverteram, como as próprias peças assumiram a textura de casulos, cápsulas naturais propícias à transformação. Mais uma vez, alongou-se na criação de vestuário, mas sem deixar de lado as peças de joalharia, emblemas de uma carreira. Combinados, vidro, metal e acrílico protagonizaram as imagens fortes a que já habituou o público da ModaLisboa. A nota de humor chegou através de um elemento inusitado — Quaresma construiu algumas peças com os tubos usados nos testes à Covid-19.

Valentim Quaresma © Ugo Camera

Coube a Carlos Gil encerrar o terceiro e penúltimo dia de desfiles virtuais. A ânsia de beijar, tocar e abraçar empurrou o designer para uma coleção repleta de cor, mas onde as novas exigências do mercado o aproximaram de um registo mais desportivo. As lantejoulas e franjas de outrora vão ter de esperar mais um pouco para voltarem a sair do armário — Gil privilegiou peças de conforto, sem no entanto descurar itens clássicos como o blazer ou o vestido de comprimento médio.

Os beijos podem continuar por dar, mas em compensação, o designer espalhou-os pela roupa e pelos acessórios. O conforto ressaltou uma vez mais nas malas criadas para o próximo inverno — trazem as cores e o toque dos típicos cobertores de papa, mantas em lã, tradicionais da Guarda. Mais um afago — um dos possíveis — numa altura em que o toque permanece em espera.

Carlos Gil © Ugo Camera

Depois de uma passagem pela Semana da Moda de Paris, no início de março, Constança Entrudo voltou a Lisboa para apresentar a sua última coleção no Pátio da Galé. “The World We Live In: Part II” resulta de uma nova conexão com a natureza, por via da contemplação, mas também de um trabalho já longo de experimentação com a técnica do Bordado Madeira, mas também da tapeçaria madeirense.

A 56ª edição da ModaLisboa termina este domingo. São esperadas as apresentações de Aleksandar Protic, João Magalhães, Gonçalo Peixoto, Luís Carvalho e Ricardo Preto, que fechará a edição com um desfile transmitido às 21h. Até lá, na fotogaleria, veja (ou reveja) as imagens dos desfiles que marcaram o último sábado.