Ao terceiro dia, Béhen ressuscitou, ou melhor, regressou, para abrilhantar o calendário da ModaLisboa — e até trouxe pão. A 62.ª edição chegou ao fim neste domingo movimentado, onde convergiu moda, eleições legislativas e a cerimónia dos Óscares. Focamo-nos aqui no que se passou no Pátio da Galé, num dia dominado pelo apelido Duarte. Referimos, claro, Ana Duarte e Joana Duarte, as criadoras de DuarteHajime e Béhen, os dois grandes destaques da última jornada do calendário. Pelo caminho, houve uma apresentação que uniu três designers ucranianos, as workstations de Filipe Cerejo e ARNDES, e os habituées Valentim Quaresma e Lidija Kolovrat a fechar o evento.

Joana Duarte amassou o pão que desfilou no Pátio da Galé e revisitou as raízes ribatejanas num regresso recebido com entusiasmo: “Quis trazer as coisas para mais perto”

Saltou a edição passada e voltou em data de assinalar quatro anos de marca. É preciso tempo para fazer contactos, escolher as pessoas certas, que dominam técnicas artesanais com história e tradição, as bordadeiras com a coragem necessária para se aventurarem em novas formas de trabalhar, respeitando o simbolismo que carrega cada uma das peças. Uma favorita do público, Joana Duarte agitou o certame no final do desfile, quando apareceu para cumprimentar o público, que a recebeu com palmas e uivos de entusiasmo. Ainda com a energia a borbulhar, chegou à sala de imprensa e pediu que lhe trouxessem o moodboard antes de começarmos a conversar. “Ajuda-me a falar da coleção”, explica sobre o quadro onde pregou  imagens, bordados da Madeira, da Glória e de Viana. “É que isto é muito ingrato, A seguir ao desfile nunca me lembro de nada.” Não Te Quero assinala quatro anos de Béhen com uma panóplia de técnicas tradicionais portuguesas e um saltinho às origens ribatejanas da criadora . “Quis trazer as coisas para mais perto”, explica ao Observador. Essa proximidade materializou-se no bordado da Glória do Ribatejo, nas mantas de Minde, o grande destaque da coleção, e nas meias em crochet dos tradicionais trajes de folclore de São Vicente de Paúl.

Os brincos são feitos de pão amassado por uma fábrica com 50 anos, mas tomaram forma pelas mãos de Joana Duarte

“As mantas tradicionais são feitas em algodão, neste caso, porque as antigas, as que eu tinha no meu enxoval eram pesadíssimas, feitas de lã.” Pô-las em saias, tops, calças, casacos, cachecóis, carteiras e cintos, a tradição reinventada. Modelagem, acabamentos, conceito, tudo começou a ser decidido depois da última coleção que apresentou, em março do ano passado. “Tudo isto envolve muita pesquisa e muitos testes, tentativa e erro.” Na edição passada, como habitual, Joana Duarte saltou a ModaLisboa para se dedicar a outros projetos. Continua a fazer sentido apresentar no calendário da moda nacional? “Depende dos dias”, brinca. “Os dias antes são horríveis, não vou mentir, mas gosto muito de fazer os desfiles. Para nós, uma vez por ano é o possível. Só a pesquisa de terreno que isto envolve…” E recorda “meses” que passa em contacto permanente com artesãos de várias comunidades, a esmagadora maioria acostumada a trabalhar as suas técnicas em materiais específicos. “Na Glória do Ribatejo, por exemplo, costumam trabalhar com linho ou algodão e eu chego com a ganga. São materiais a que não estão habituados, que nunca sequer experimentaram. É preciso encontrar as pessoas que estão disponíveis para experimentarem as minhas ideias.”

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Em Não Te Quero, olhou para os quatro anos da marca e separou o trigo do joio. “Revisitámos as coleções todas e tentámos perceber o que resulta melhor”, deixou de parte o que, para já, não quer fazer. “Transformámos o universo da Béhen, criado ao longo dos últimos quatro anos, em peças ‘vestíveis’.” Da edição passada, recuperou as carteiras feitas de pão, juntou a estas as argolas e os brincos — e pôs literalmente a mão na massa. “A minha mãe ajudou-me na última vez. Desta vez fui eu que fiz sozinha”, partilha. E porquê o pão? “Vem de uma pesquisa sobre o pão enquanto identidade cultural, enquanto identificador português. E, principalmente, sobre o papel das mulheres na massa.”

DuarteHajime quis mostrar que a roupa não é só um produto acabado. “Sentia-me encravada, criativamente. Pensei: ‘Por que não falar sobre isso e desconstruir o processo?'”

AW24 In Process foi uma lufada de ar fresco e, de certa forma, um corte com a tradição. Não partiu de uma modalidade desportiva ou de uma viagem, pelo menos não no sentido literal. “Não tenho feito muito desporto porque estive grávida. Também não tenho viajado. Estava um bocadinho bloqueada, porque as viagens, normalmente, são o meu ponto de desbloqueio”, começa por explicar Ana Duarte ao Observador. Foi mãe de Filipe, o seu primeiro filho, há cerca de seis meses, pouco antes de ter apresentado na última edição da ModaLisboa. “Nem sempre tenho o tempo que gostava para desenhar.” Foi durante um passeio com o cão Tadao — batizado em homenagem ao arquiteto japonês Tadao Ando — que se lembrou de fazer uma viagem pelo próprio processo criativo. “Sentia-me encravada, criativamente. Pensei: ‘Por que não falar sobre isso e desconstruir o processo?’ Porque o nosso processo criativo também é difícil. Por vezes, custa transmitir e por no papel. Achei que era válido mostrar que era o que estava a passar no momento.”

Duas mangas de malha desfilaram. A fechar o desfile, surge um colete. “Era como se as mangas fossem as do colete”, explica, a querer chamar um “inverno quente”

Em honra à estrela que a guiou, imprimiu uma citação de Tadao Ando no flyer que foi distribuído pelos assentos da plateia: “A minha mão é a extensão do processo de reflexão — o processo criativo.” A linha chegou em tons neutros, preto, branco, cinzento, creme, bege e verde seco, entre algodões e lãs, incluindo poliéster reciclado. O estilo mantém-se urbano, sem género, e as referências ao judo, que está cravado no ADN da marca, fizeram ver-se em cinturões de casacos e jaquetas. “São referências que me inspiram e que estão sempre presentes nos meus designs.”

Em DuarteHajime, o público espera sempre uma performance. Começou com três estagiárias do atelier a ilustrarem, em manequins, que “a roupa não é só um produto acabado. Há toda uma história por trás”, ilustrações, moldes e protótipos a serem mexidos à frente do público. A chamar um inverno quente para a próxima estação, convidou os Pepperoni Passion para uma atuação que guiou toda a festa, do princípio ao fim. Conheceu-os quando desenhou os casacos que usaram para concorrer ao Festival da Canção, no ano passado. “Eles já fizeram parte do processo criativo”, reflete. Fiel ao conceito, também a performance dos três artistas mostrou o esqueleto da criação de uma canção, a criação de um ficheiro no computador, a composição por camadas, e a música final, “Inverno Caliente”, com que animaram o público.

Da última vez que falou com o Observador, Ana Duarte contou que o filho teve de lhe fazer companhia no atelier, acabado de nascer naquelas últimas semanas corridas antes da ModaLisboa. “Agora vai menos, porque já está na creche”, conta. “Se calhar na próxima já aparece aqui, porque já vai ter um ano”, sugere. E acrescenta, divertida: “Já vai chegar ao verão com um bucket hat estampado.”

Kolovrat encerrou uma edição que convergiu com Óscares, Festival da Canção (no sábado) e eleições legislativas

O dia começou com três de 67 designers ucranianos apoiados pela iniciativa Support Ukrainian Fashion, lançada pela Semana da Moda ucraniana depois da invasão russa com o objetivo de capacitar criadores durante o conflito. Saiba mais sobre a sua história neste artigo especial do Observador. Seguiu-se a workstation de Filipe Cerejo —  com o erótico e delicado HOMO SUM, uma “ode à liberdade de ser quem somos, sem restrições ou expectativas sociais” — e ARNDES — roupa de trabalho, tecidos do dia-a-dia “com uma nova interpretação dos códigos diários”.

“Nunca me vou esquecer de quando, sentada no abrigo, sob bombardeamentos, me despedi da minha marca e dos meus sonhos”

Pelas 19h30, já com um ligeiro atraso, It’s the Fit, Not the Brand, uma apresentação envolta em mistério, revelou ser um momento da Salsa, a querer provar que o que mais importante “não é a marca”, mas como os jeans assentam no corpo. Seguiu-se o sempre irreverente Valentim Quaresma, que tirou as suas clientes mais próximas da primeira fila da sala de desfiles e pô-las bem no centro da ação, a desfilar para uma sala que as viu passar com entusiasmo, mostrando os acessórios surrealistas e peças assimétricas do criador. A fechar esta edição num fim de semana cheio de ação, Kolovrat transformou o cinzento de um dia de nevoeiro num crepúsculo rosado, numa linha escultural, cheia de assimetrias, transparências, volumetrias e fluidez.

E por aqui termina mais uma edição da ModaLisboa. Espreite a galeria, lá em cima, para conhecer os destaques do último dia. Quando acabar, dê um saltinho ao artigo onde mostramos o que se passou fora do palco principal do Pátio da Galé, o sempre animado streetstyle.

Portuguese girlies, irreverência e uma chuva de óculos de sol. Foi assim o streetstyle que desfilou pela ModaLisboa