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“Please, Please, Please”. Por favor, dancemos contra a catástrofe

Este artigo tem mais de 3 anos

Mathilde Monnier, La Ribot e Tiago Rodrigues juntaram-se para nos falar do fim da humanidade e do vazio para as próximas gerações de adultos. Dança, texto e uma criatura enorme em palco.

"Please Please Please" estará no palco do festival Dias da Dança, no Porto (esta quinta e sexta) e depois passa por Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II (29 e 30 de abril)
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"Please Please Please" estará no palco do festival Dias da Dança, no Porto (esta quinta e sexta) e depois passa por Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II (29 e 30 de abril)

"Please Please Please" estará no palco do festival Dias da Dança, no Porto (esta quinta e sexta) e depois passa por Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II (29 e 30 de abril)

A luz não abunda. Como se estivéssemos no sopé do mundo, nas entranhas da terra. Ao centro, um elemento cenográfico de dimensões exageradas — ao centro e não só, tal é a lonjura da criatura, provavelmente monstro marítimo, provavelmente raposa-ciborgue. Circundando-o, adivinhando-lhe a pele e o tronco, duas intérpretes algures entre um escaravelho e um humano-inseto, de vestes brilhantes e coloridas, cujo fato elástico contém um capuz. Assim que cobrem a cabeça a música avança, assim que o retiram a música pára. As duas intérpretes, neste caso, são também criadoras e logo duas das mais importantes no que à dança contemporânea diz respeito. Juntamente com o diretor-artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) e criador Tiago Rodrigues — que em julho vai estrear O Cerejal, de Anton Tchekhov, numa produção do Festival d’Avignon — trazem Please, Please, Please (espectáculo estreado em Lausanne, em 2019) ao Porto, mais precisamente ao DDD — Festival Dias da Dança, onde estas quinta e sexta-feira marcam presença no Teatro Carlos Alberto, e ainda em Lisboa, no TNDMII, nos dias 29 e 30 de abril.

Não é inédita a cumplicidade evidente até em cena entre a francesa Mathilde Monnier e a hispano-suíça La Ribot. Estas duas instituições no mundo da dança já tinham feito, em conjunto, Gustavia, em 2008, um espectáculo em torno da noção de burlesco e de striptease, que no ano seguinte passaria pela Culturgest e seria visto por Tiago Rodrigues, que estava longe de imaginar que dez anos depois este convite lhe chegaria.

O encenador português tinha-se cruzado com Mathilde Monnier em algumas digressões em território francês, ou seja, já se conheciam pessoalmente e já partilhavam admiração. La Ribot era-lhe mais distante, mas o mútuo reconhecimento do trabalho desenvolvido era também evidente. “Aceitei imediatamente, em grande medida pela curiosidade de as ver trabalhar e de poder ver o trabalho de criação coreográfico por dentro e de me pôr ao serviço do espectáculo”, explica Tiago Rodrigues, que depressa admite que esta lógica de trio foi das primeiras concepções a que se agarraram.

“Desde o início sabíamos que ia ser uma criação a três, com as duas em palco. Uma das perguntas que nos animou muito foi também essa: como é que vamos trabalhar em conjunto, antes ainda de pensarmos que peça vai resultar desse trabalho. A ideia de trio, de triângulo interessou-nos logo muito, podermos trabalhar em três ideias que fossem tocadas por algumas questões semelhantes e que não estivessem necessariamente a ser trabalhadas da mesma maneira, para nos permitir que, em alguns momentos, o corpo, o movimento tivesse todo o protagonismo e guiasse o caminho, noutros momentos que fosse o texto, e noutros momentos não sabemos muito bem como é que as coisas se juntavam.”

Tiago Rodrigues: "O conflito de gerações à volta da noção de esperança foi o que quisemos tratar com esse diálogo, que é ao mesmo tempo um diálogo cómico, mas muito trágico"

Gregory Batardon

E sendo este um terreno menos teatral do que aquele que habitualmente pisa Tiago Rodrigues, estando nós na praia da dança contemporânea, é natural que os trabalhos se centrem muito mais na dimensão de improviso, num ritmo fragmentado, onde se levantam blocos que ficam, mas também se erguem muitos que não servem, que mais não são que passagens temporárias antes de rumarem ao lixo. Nesse sentido, o processo de escrita foi bastante diferente daquele a que está habituado o diretor-artístico do TNDMII. Se La Ribot e Mathilde Monnier iam por zonas, por pedaços, também Rodrigues o tentou fazer, propondo-se a escrever uma história por dia, inspirada nos ensaios, nos movimentos, nas leituras de Kafka e de Duras que partilharam, nas suas conversas. O resultado foi, a certa altura, ter 120 páginas das quais só sobraram umas 20, mas siga o baile:

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“Escrevi várias peças, vários poemas, vários contos, em termos de escrita foi muito diferente do que é o meu processo habitual, é talvez o espectáculo em que deitei mais texto para o lixo e foi um processo de escrita a mimetizar o trabalho de improviso no estúdio da dança contemporânea. Vamos experimentar todos os dias qualquer coisa e ao fim de dez dias há de haver 3 ou 4 minutos que nos servem”, conta.

E se os criadores são três, o espectáculo tem três momentos. Depois de um primeiro onde o texto não tem lugar, ele lá aparece, de uma forma meio frenética, em histórias meio absurdas ou surreais enquanto Monnier e La Ribot dançam como se estivessem a correr, movidas a uma bateria insistente e que parece servir de obstáculo à dicção, ou seja, fôlego atribulado neste exercício performativo. Uma coisa é certa: dançar e dizer texto assim não é para qualquer pessoa. Algures entre uma aula de fitness tagarela e uma festa de gala que já perdeu o charme inicial, as bailarinas guiam-nos por narrativas estranhas, espécie de fábulas, girafas perdidas, elefantes tímidos, sítios no subsolo, “a imagem de um deserto onde se encontra um esqueleto de uma baleia, ou a ideia de que uma raposa passará a ter 40 metros de comprimento”.

Sempre iluminadas pela palavra mais repetida e que aqui mais importa: catástrofe. “Histórias que falam todas dessa iminência de catástrofe ou da tentativa de sobreviver à catástrofe que aconteceu. Uma catástrofe que às vezes pode ser muito pessoal, a filha que tenta escrever uma carta ao pai para romper laços com ele, mas depois não consegue porque a papelaria está fechada e não há selos e acaba por passar o resto da vida a concordar com tudo o que pai lhe diz, apesar de na carta dizer que discorda, é uma catástrofe muito íntima. Depois há outras catástrofes, referências a Hiroshima, fantasma da Marguerite Duras a iluminar-nos o caminho, referências a incêndios, referências ao genocídio dos povos indígenas ao longo dos séculos, mas são tudo catástrofes com os quais a espécie humana tenta lidar, sobrevivendo, escondendo-se, esquivando-se”, enquadra Tiago Rodrigues.

Se os criadores são três, o espectáculo tem três momentos. Depois de um primeiro onde o texto não tem lugar, ele lá aparece, de uma forma meio frenética, em histórias meio absurdas ou surreais.

Gregory Batardon

Não há como fugir ao debate geracional, ao confronto entre tempos distintos, com perspectivas de futuro drasticamente contrastantes. Até aqui — talvez aqui seja demasiado relativo ou falacioso, mas tomemos aqui como até há uns tempos — a incerteza de um mundo sustentável era também uma ideia ao serviço da ficção, emergir distopias, imaginar alternativas.

“Assistimos hoje às primeiras gerações de humanos, que têm a certeza absoluta de que a catástrofe é inevitável devido à crise climática. Ou seja, talvez de uma forma inédita da história da humanidade, estas são as primeiras gerações que sabem que vão viver pior que as gerações anteriores, o que é muito contra-natura para a espécie humana, que sempre tentou, apesar das guerras e das pestes, caminhar para que a próxima geração vivesse melhor. Neste momento, temos muitos dados que nos contam que isso não vai acontecer e que provavelmente atingimos o pico de qualidade de vida na nossa espécie no planeta”, afirma o encenador.

O terceiro bloco, ou capítulo, ato na visão mais teatral de Tiago Rodrigues, fragmento, na visão mais próxima da dança de La Ribot e Mathilde Monnier, é talvez o mais narrativo. O movimento perde fulgor, o texto sobe mais um degrau. Uma mãe (Mathile Monnier) fala com a sua filha recém-nascida (La Ribot). Sim, é recém-nascida e já fala e fala em espanhol, língua diferente da sua mãe. E esta é uma zona profundamente cómica, mas que não deixa de se relacionar com uma certa mágoa e tristeza em relação ao sítio em que chegámos, uma recém-nascida que já sabe ao que vem, que já sabe que isto não corre para bom porto, e que assim pede, por favor — Please, Please, Please — à sua mãe para deixar de fazer promessas. O riso, às tantas, pode dar lugar à lagrima:

“A grande diferença entre elas é que a mãe que acabou de ter uma bebé e, portanto, está cheia de esperança e a bebé nasce já deprimida, e é incapaz de ter esperança, ou seja, que olha para a esperança como algo que em vez de nos conduzir à ação e à mudança para melhor, nos apazigua, nos anestesia e nos faz ficar à espera quando deveríamos agir urgentemente. Esse conflito de gerações à volta da noção de esperança foi o que quisemos tratar com esse diálogo, que é ao mesmo tempo um diálogo cómico, mas muito trágico e no qual tentamos chegar a uma ideia de que eventualmente a criação artística pode ser um substituto da esperança”, esclarece.

A catástrofe já chegou. As promessas são inúteis.

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