Há uma cena de “Marighella — O Guerreiro”, o filme de Wagner Moura sobre o guerrilheiro urbano Carlos Marighella, em que este é entrevistado por um deferente jornalista francês, que após lhe dizer o quanto Jean-Paul Sartre o admira, lhe pergunta se é comunista. Resposta de Marighella: “Sou brasileiro. Não sou comunista”. A ideia que ele queria passar é que punha a pátria acima da ideologia, mas a verdade é que Marighella era um comunista dos quatro costados, militante e deputado do solidamente estalinista Partido Comunista Brasileiro (PCB). E quando em 1967 foi expulso deste, enveredou pela luta armada contra a ditadura militar, instaurada em 1964, fundando no ano seguinte o grupo de guerrilha urbana Acção Libertadora Nacional (ALN).

Marighella, autor do Manual do Guerrilheiro Urbano, tentou aplicar no Brasil a teoria do “foquismo” enunciada por Che Guevara e Regis Debray em pleno contexto geopolítico e ideológico da Guerra Fria, que bebeu em Cuba e que consistia na criação, em todo o mundo, de “focos de luta armada” urbana e rural,  para fazer eclodir “um, dois, três, muitos Vietnames.” É tão anacrónico como descarado que várias décadas após a queda do comunismo, o fim da Guerra Fria e a derrota e extinção dos movimentos terroristas, da Europa à América Latina, Wagner Moura venha, em “Marighella”, impingir-nos o mito romântico e envenenado do “nobre e abnegado guerrilheiro” e a ilusão carcomida da “boa causa” da luta armada revolucionária. Marighella não queria eleições, democracia e liberdade. Queria a ditadura do povo armado, como escreveu no citado “Manual”. 

[Veja o “trailer” de “Marighella-O Guerreiro”:]

No filme, que assinala a sua estreia como realizador, e é inspirado no livro Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães, Moura apresenta um retrato escassamente crítico, simplista e elogiador de Marighella, cujo recurso à violência revolucionária no seio da ALN (“Olho por olho”, é o lema dos terroristas, várias vezes repetido ao longo da ação pelo seu líder e pelos militantes) é justificado pela ação repressiva, torcionária e violenta das forças do Estado. Quando na realidade os métodos dos dois se equivaliam mutuamente e eram ambos detestáveis e condenáveis. 

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Aliás, se o regime militar acabou por ter que fazer uma abertura política a partir de finais dos anos 70, e sair de cena e dar lugar à democracia plena, isso deveu-se ao seu próprio desgaste interno e à acção do MDB, o único partido da oposição tolerado, e de várias forças, movimentos e organizações da sociedade civil. Nada se deveu à luta armada, cuja inspiração e objetivos totalitários nunca trariam nada de bom ao país e que foi aniquilada, com extrema dureza, no consulado do general Médici.

[Veja excertos da conferência de imprensa do filme no Festival de Berlim:]

A fita abarca apenas os últimos anos de vida de Carlos Marighella, desde a rutura com o PCB e a fundação da ALN, no tempo em que levou a cabo vários assaltos, atentados bombistas, sequestros e assassínios, até à sua morte, em 1969, numa emboscada liderada pelo implacável delegado Sérgio Fleury, a “alma negra” de Marighella (referido no filme como “Lúcio”) e interpretado por Bruno Gagliasso como um monstro de rosto humano (todas as personagens associadas ao regime são patibulares, escarninhas, boçais e brutais, enquanto que os guerrilheiros são dignos, abnegados e corajosos, e os poucos que se vão abaixo merecem apenas desprezo). O filme não refere o outro nome sonante da guerrilha brasileira, o militar Carlos Lamarca, conhecido de Marighella, já biografado (e também de forma elogiosa) pelo cinema brasileiro em “Lamarca”, de Sérgio Rezende (1994).

Wagner Moura tem mão segura para as sequências de ação, como a inicial do ataque ao comboio ou a do assalto ao banco. Mas além da falta de contraditório, de um argumento cheio de mini-discursos “inspiradores” e frases feitas edificantes, e da duvidosíssima heroicização da personagem principal, o filme dá ainda o papel de Marighella ao cantor e ator negro Seu Jorge, quando aquele era um mulato, filho de uma negra e de um imigrante italiano, como se pode constatar por uma simples pesquisa na Internet (o “rapper” Mano Brown, também mulato e parecido com Marighella, era a escolha inicial do realizador para o papel). Chama-se a isto deturpar a realidade para meter a martelo a luta contra o racismo onde ela não faz qualquer sentido.