O código que foi criado para levar seres humanos à lua tinha exatos 72 kilobytes – mais ou menos o mesmo que um qualquer dos memes que ocupam grande parte da internet, e muito menos que um streaming de vídeo e áudio de três minutos e 52 segundos, que pode facilmente chegar aos 33,3 megabytes.

As conclusões a tirar da informação acima podem ser várias, inclusive de ordem moral (há quem diga que hoje temos para brincadeiras o que ontem era necessário para o avanço da humanidade), mas nenhuma estará completa até gastarmos 33,3M de streaming a ouvir este conjunto de zeros e uns que codificam a voz de Marvin Gaye em “What’s Going On”, sem a presença de instrumentos:

Este não é o único vídeo disponível no Youtube em que se ouve a voz de Marvin Gaye a capella, isto é, desprovida dos instrumentos que compõem a canção; alguém se deu ao trabalho de fazer o mesmo com uma das canções mais famosas de Gaye, aquela que é uma das maiores canções de dor de corno de todos os tempos, o seu primeiro grande êxito, “I Heard it Through the Grapevine”:

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Não é preciso convocar um júri de um concurso televisivo para declarar que o que se passa nestes vídeos apenas com a voz de Gaye é do foro do génio, do extraordinário: a voz perfeita, colocadíssima, acertando em cada nota à primeira, com o vibrato exato, uma mesura imensa no prolongamento de cada nota. Mas gente com voz de ouro há aos pontapés – que a saiba usar só há um punhado.

Quem nasceu na década de 1970 chegou a Gaye exatamente por aqui – não pelos vídeos do Youtube, mas por “I Heard it Through the Grapevine”, ora na versão das Slits ora na dos Tuxedomoon. Encontrar o original não foi coisa fácil, mas há sempre um amigo que tem um primo cujo tio tem um vinil e um dia há uma cassete com uma compilação (o que os manos de hoje chamam mixtape) com o original de Gaye e aquilo ali no chão é o meu queixo e queres ver que estes gajos da soul, que supostamente era uma coisa má e melosa, faziam canções inacreditáveis?

Faziam – e na década de 90 começámos a ter uma pequena ideia de quantas e quão extraordinárias à medida que a indústria teve a ideia de reeditar em CD discos que há muito ninguém pegava, ao ponto de as suas prensagens em vinil estarem esgotadas e só se encontrarem exemplares nas feiras da ladra deste mundo. Canção aqui, canção ali Marvin Gaye, Smokey Robinson, Curtis Mayfield iam-se revelando admiráveis artesãos e/ou intérpretes daquilo a que se chamou soul ou funk, enfim, tudo aquilo que derivou do gospel e se tornou secular (no sentido de não-religioso).

Mas nada nos preparou para o momento da reedição de What’s Going On – e ali estávamos nós, um bando de putos de esquerda, que haviam crescido com a ética punk, a quem fora dito que dançar era coisa de quem ouvia música comercial e não lia livros (o que fazia com que ouvíssemos Prince às escondidas), que abominavam o capitalismo e de repente lançavam hossanas ao mesmo por disponibilizar uma obra-prima para a qual não tínhamos referência, nem sabíamos como enquadrar.

[ouça na íntegra a edição comemorativa dos 50 anos de “What’s Going On”, através do Spotify:]

Não que as pessoas de 1971 soubessem – era suposto que Gaye fosse apenas uma faccies agradável com uma boa voz, uma cara laroca para vender discos, e do nada ele criava um disco que não só era de um grau de experimentalismo inusitado como estava pejado de política, um negrume imenso pelo estado do mundo, uma tristeza sem fim pela condição do homem negro, pela vida em que fazíamos as nossas crianças crescer.

Gaye nunca quis ser apenas uma cara laroca – não que recusasse os luxos que advinham de ser uma estrela pop (as mulheres, o álcool, as drogas); simplesmente a combinação de deboche e conta bancária recheada não amainava as suas ânsias criativas. Na Motown, a sua editora, havia uma espécie de regra não-escrita: só tinha direito a escolher o seu caminho quem já fizera a editora ganhar dinheiro suficiente. E mesmo assim, nem sempre isso era garantia de que um autor conseguia impor a sua visão.

Quando Gaye levou “What’s Going On” (a canção que dá título ao disco que comemora 50 anos de vida) a Berry Gordy, o dono da Motown, este rejeitou-a; a canção, um funk balançado com arranjos delicados de cordas e metais, enquanto uma profusão de acordes menores a enchiam de melancolia, era baseada num caso de violência policial sobre negros em Berkley; Gordy temia que Gaye, havendo conseguido trazer a si uma audiência tanto negra como branca, perdesse os brancos ao meter-se na política.

[“What’s Going On”:]

Nem sempre avaliar uma canção pela luneta da caixa registadora é a melhor forma de antecipar o sucesso que a mesma terá; por vezes, é mesmo melhor encostar o ouvido ao mundo e perceber o que faz o sangue deste correr. Onde Gordy viu cores de pele que podiam entrar em conflito, Gaye viu um conflito entre cores de pele que tinha de ser cantado e tinha de ser cantado EXATAMENTE NAQUELE MOMENTO.

A década de 60 vira a música popular abordar temas de direitos sociais com regularidade; em 1964 Sam Cooke editou “A Change is Gonna Come”, considerada a primeira canção popular sobre os direitos dos negros (e uma canção do outro mundo). Gaye reagiu à nega de Gordy entrando em greve: não gravava nem mais uma música enquanto não editassem “What’s Going On” (a canção). Gordy cedeu – o single trepou todas as tabelas de vendas por todo o lado e acabou a vender dois milhões de cópias.

Gaye derrotara Gordy no seu próprio jogo, o da caixa registadora, porque a sua voz, as suas palavras (e aqueles incríveis arranjos) ecoaram por toda uma América dividida pela violência policial, pelas diferentes regras para os negros (um pouco à imagem do que hoje, de novo, ocorre).

[“Inner City Blues”:]

O som do dinheiro a entrar fez o semáforo mudar para verde – Gaye tinha autorização para fazer o que quisesse e, munido de mais uma mão-cheia de canções que andava a compor, e dos melhores músicos e arranjadores da Motown, bastou-lhe uma semana para gravar What’s Going On (o disco).

E que disco. “Right On” tem tudo, uma linha de baixo diabólica, flautas psicadélicas, um piano muito r’n’b, cordas sumptuosas a subir e um repto à paz, ao fim do ódio, tudo isto enquanto a anca diz ao cérebro que se vai libertar e que ele (cérebro) que venha atrás se quiser; “I’m Flyin’ High In the Friendly Sky” era mais jazzy, mais lenta, com a voz de Gaye a libertar-se da gravidade e a rodopiar no céu, acompanhada apenas das cordas; na sequência (quase como se não houvesse separação entre as canções) entra “Save the Children”, que abre logo com um coro e múltiplas faixas da voz de Gaye, que pergunta: quem realmente quer salvar um mundo que está destinado a morrer?

[Right On:]

Quando olho para o mundo, canta Gaye em “Save the Children”, ele enche-me de mágoa; essa mágoa conduziu-o a um daqueles discos maiores que a vida, em que cada canção chega mais acima que a anterior, cada arranjo descreve uma órbita cada vez mais arriscada, mais louca, e de repente tudo – o jazz, os cantares dos escravos, a soul, o funk, o psicadelismo – ferve no caldeirão ao qual não se consegue dar nome, porque não havia, não há, nunca haverá música assim.

Ninguém é só uma coisa; o mesmo Marvin Gaye que nos leva às lágrimas a cada batuque de “Save the Children”, que se antecipa às discussões de hoje em “Mercy Mercy Me (the ecology)”, uma canção esmagadora, estava – apenas dois anos depois – a entregar Let’s Get It On, um disco absolutamente desprovido de qualquer outra preocupação que a de trocar fluídos corporais com (presume-se) o maior número de donzelas possível. Gaye nunca fazia as coisas por menos e Let’s Get It On, por mais comercial que seja, é um disco aventureiro como pouco, e imaginou o funk para a década de 80 – o que culminou com Sexual Healing, de 1982, mas que soava a 2022.

Ninguém é só uma coisa e Marvin Gaye nunca deixou de ser o filho de uma família problemática – a 1 de abril de 1984 tentou separar os pais durante uma altercação particularmente violenta entre os dois, que culminou com Marvin Gay Sr. a disparar duas vezes contra o filho.

Ao meio dia este era dado como morto; a sua obra, porém, não há forma de abater.