O encenador alemão Frank Castorf diz claramente ao que vem, e não é parco em ambições: “o teatro tem a obrigação de ser como a criança no conto de Andersen, aquela que diz’o rei vai nu’. A coragem define o bom teatro.” Assim, “Bajazet Considerando o Teatro e a Peste”, que se estreia esta quarta-feira no Teatro Nacional, em Lisboa, tendo como protagonista a atriz de culto francesa Jeanne Balibar, não é apenas mais um espetáculo, um evento cultural, é uma “força malévola e independente”, que possui “algo de demoníaco“, como explicou o encenador, numa entrevista dada ao Teatro Nacional de S. João, no Porto, onde a peça esteve em 2020, e que vale a pena ouvir aqui.

Castorf junta a tragédia Bajazet escrita por Racine, no século XVII, em rigoroso verso alexandrino, a um dos textos mais iconoclastas do teatro francês O Teatro e a Peste, de Antonin Artaud, escrita e apresentada, em 1933, na Sorbonne. A estes junta ainda citações de Pascal e Dostoievski e toda a sua experiência como diretor da mítica sala Volksbühne (Teatro do Povo), em Berlim oriental, onde nasceu, em 1951, sob o regime Comunista. Pioneiro do chamado teatro Pós-dramático, foi um dos primeiros a usar em palco imagens captadas por uma câmara de filmar, que mostra espaços não acessíveis ao espetador e introduz, no espaço cénico,  uma espécie de hiper-realismo que apenas faz adensar mais e mais o artificio e a ficção, provocando no publico um forte sentimento de inquietação: “não uso a câmara como um artificio da moda, do zeitgeist”, explica Castorf, ela é “um instrumento de vivissecção”, ou seja uma forma de dissecar em vida os corpos, os espaços, os acontecimentos que capta.

Os espaços e os tempos dissonantes fundem-se, criando uma atmosfera próxima do onírico e do surrealista ©Mathilda Olmi

Nesta peça, Castorf usa apenas uma câmara que nos mostra o que tanto pode ser o interior de um harém de Bizâncio, como o interior de uma carrinha de venda de comida de uma cidade contemporânea. Metamorfose do espaço, ultrasaturado de elementos e cores kitsch, onde um otomano (turco), do século XVII, nos olha com uns olhos de luz azul, lembrando a forma exótica e ameaçadora como a Europa via, e vê, os povos do médio Oriente, otomanos e árabes e, como a todo o momento, procura indícios dessa ameaça.

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Mas também metamorfose da linguagem ” a linguagem de Racine é como um cristal, um mineral”, enquanto a linguagem de Artaud “é a descoberta da psique, é a linguagem a desintegrar-se” e essa desintegração “é um espelho deste século XXI em que só estamos ocupados com nós mesmos”, diz ainda o encenador, que gosta de “procurar dissonâncias, juntar coisas que aparentemente não têm relação” e que considera que Racine, o mais clássico dos dramaturgos franceses, como um “autor marginal” pois atualmente quase não é representado. E, como sabemos, pelos nossos próprios autores clássicos, o momento que se tornam estátuas ou vão para o Panteão o seu destino é serem subtilmente apagados.

A linguagem é a outra grande protagonista desta obra, que procura mostrar toda a força performática da palavra dita. Assim, seja encarnando as personagens de Racine, seja como atores em confronto direto com o público, através do texto de Artaud, é-nos constantemente lembrado que cada palavra é uma ação, é um acontecimento novo que se introduz no mundo e essa é a sua força. A palavra nasce no corpo, está indissoluvelmente ligada a ele, antes de se tornar sintaxe, gramática, ela é uma expressão da experiência corpórea. É essa sua condição de ação que nos permite comunicar coisas das mais simples às mais complexas.

Esta não é, pois, uma peça que vá agradar a quem está habituado ao sentido fácil imposto pela visão meramente utilitária da linguagem, pela ilusão de que as palavras têm uma relação direta com as coisas. Castorf obriga o público a uma experiência de quase quatro horas em que a palavra jorra desde a sua forma mais sofisticada, à sua forma mais animalesca tornada gritos, urros, guinchos.

Bajazet, ou a tragédia dos sedentos de poder

Escrita em 1672, Bajazet é uma tragédia em cinco atos, que parte de acontecimentos reais ocorridos no império Otomano, algumas décadas antes. O sultão Amurat está fora numa campanha militar para tomar a Babilónia e deixa no harém o seu meio-irmão Bajazet, a sua preferida, a sultana Roxanne e o vizir Acomat, a quem cabe tomar conta do serralho. Sabendo que a popularidade de Amurat está em baixa junto das suas tropas e desejando maior poder, Acomat convence Bajazet a aproveitar a ausência de Amurat para tomar o poder e casar com a sultana. Embora seja, secretamente, amante de Atalide, Bajazet aceita casar com Roxane para conseguir concretizar as suas ambições. Por sua vez, Atalide, ciumenta mas desesperada, acreditando que Bajazet acabará por ser morto pelo sultão, age na sombra para o salvar. No final e depois de uma série de eventos trágicos provocados pela vontade de poder de cada um (poder sobre o reino, poder sobre o povo, poder sobre o coração e o amor de um homem), Bajazet, Roxanne e Atalide acabam por morrer.

Jeanne Balibar, nasceu em 1968 e é filha do famoso filósofo francês Etienne Balibar. Tem uma longa carreira dividida entre os ecrãs e os palco s©Mathilda Olmi

Racine foi um dramaturgo com um olhar bastante desencantado sobre a condição humana que, acreditava, ser sempre impulsionada por paixões e desejos egoístas e não pela razão ou o altruísmo. É transversal à sua obra a ideia de que no fim, nos momentos chave todos procuram apenas responder aos seus próprios interesses e isso é fatal. As peças racineanas têm sempre poucas personagens fechadas num círculo de conflitos, ambições e desejo de poder, pois o poder é para o humano sempre uma forma de acreditar ser imortal. E Bajazet, a menos conhecida das suas peças, não é exceção.

Na versão de Castorf os tempos antigo e atual misturam-se, tanto temos odaliscas do século XVII como mulheres que vestem roupas colantes de pele, ou fatos de alta-costura. O vizir Acomat, tanto veste um camuflado, como um fato de treino igual ao dos jovens dos arredores de Paris. Mas Bajazet, interpretado por Jean-Damien Barbin é talvez a figura mais fascinante, porque Castorf afasta-se de Racine e faz desta personagem uma evocação de Antonin Artaud: em vez de um jovem viril, ele é um toxicómano, com o olhar enlouquecido, olheiras fundas, a voz oscilando entre a tranquilidade mística e os agudos estridentes, um homem cuja fraqueza física e moral se tornam gradualmente omnipresentes. Jeanne Balibar, atualmente companheira de Frank Castorf, é a bela e poderosa Roxanne que acaba por ser apanhada nas malhas de uma fragilidade que não julgava ter. A sua fachada de dominatrix cai sempre que a câmara a apanha no interior e sob outra luz vemos o seu rosto envelhecido mas ainda belo, prestidigitador da tragédia para onde avança.Claire Sermonne, Atalide, é uma jovem atriz que já trabalhou em várias peças de Castorf, evoca plenamente a inocência perversa, cujo sentimento de inferioridade, o ciume acabam por fazer com que nunca viva em pleno a sua juventude e beleza, acabando por se suicidar.

Tanto Roxanne como Atalide vão servir para Racine falar do poder das mulheres, poder que exercem na sombra, entre silêncios, falsas subserviências e pactos com o diabo. Toda esta narrativa pode também ser entendida como uma reflexão sobre fraqueza e o exercício da autoridade por via da manipulação e da violência. Também é sobre isso que fala Artaud, que nunca suportou o poder autoritário (do mestre do surrealismo, Andre Breton, ou do filósofo e ensaísta George Bataille, por exemplo, de quem foi próximo e se afastou por não lhes suportar o tom ditatorial), mas também o autoritarismo de uma certa estética teatral, das instituições psiquiátricas onde viveu parte da vida. A sua obra é sempre uma luta contra as formas de poder que visam formatar, normalizar os indivíduos. Um dos seus textos mais famosos Para acabar de vez com o Juízo de Deus (que também é  citado por Balibar nesta peça), foi escrito para um programa de rádio. Depois de ouvir a gravação o diretor da estação proibiu a difusão da obra. “Hoje, como em 1948, nenhuma rádio passaria o texto de Artaud”, reflecte, com alguma desolação, Frank Castorf, na entrevista ao TNSJ. Em França, a peça passou na rádio pela primeira vez em 1972 e foi o presidente conservador Georges Pompidou quem levantou a sua interdição. O que mostra que já vivemos, de facto, tempos mais livres.

Bajazet, de Castorf é um teatro que não tem medo de ser rude, agressivo, provocador, é ele mesmo quem afirma com frontalidade: “o bom teatro é uma luta de cães”.

A peça está em cena no Dona Maria quarta e quinta-feira  As sessões do espetáculo foram antecipadas para as 18h, atendendo à hora prevista de término do mesmo e em face das medidas de desconfinamento vigentes.