Em 2010, vários anos depois de ter acabado a carreira de jogador, vários anos antes de ter começado a carreira de treinador e ainda vários anos antes de saber que iria ser selecionador espanhol, Fernando Hierro falou sobre Silvia Dorschnerova numa entrevista. “Se não existisse tinha de ser inventada”, disse o antigo central, numa das poucas declarações públicas sobre a mulher que se senta no banco da seleção espanhola há mais de 20 anos mas sobre a qual pouco se sabe. Silvia, delegada técnica de Espanha, vai deixar a equipa e reformar-se assim que a participação da seleção no Euro 2020 terminar — e esse é um dos principais motores de motivação de jogadores, equipa técnica e staff.

Filha de pai alemão e mãe checa, Silvia nasceu em Mönchengladbach, na Alemanha, e mudou-se com a família para Espanha aos 12 anos. A ligação ao futebol não foi imediata: não tinha antecedentes familiares e só se apaixonou pela modalidade depois de ver um jogo no antigo Estádio Vicente Calderón, no mesmo dia em que também se apaixonou pelo Atl. Madrid. O primeiro contacto com a Federação espanhola apareceu em 1982, o ano do Campeonato do Mundo que decorreu em Espanha e que foi uma espécie de carta de apresentação ao mundo de um país que tinha saído de uma ditadura há ainda pouco tempo.

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No Mundial do Naranjito, em que Espanha não passou da segunda fase de grupos (uma espécie de quartos de final com grupos de três equipas antes das meias-finais), Silvia Dorschnerova aproveitou a bagagem de ter nascido noutro país e de se interessar por outras línguas e trabalhou como tradutora — afinal, fala espanhol, inglês, francês, alemão e um pouco de checo e italiano. Integrou o Comité Organizador e teve como principal responsabilidade o contacto e a ligação com as comitivas estrangeiras, já depois de ter trabalhado no Comité Olímpico espanhol em funções semelhantes, e cinco anos depois foi chamada novamente para incluir de forma efetiva a delegação da seleção espanhola de futebol.

Em 1987, depois do Mundial do México e antes do Europeu da Alemanha, Silvia passou a fazer parte da equipa de Julián del Amo, delegado técnico da seleção espanhola durante 35 anos. Ao lado do mentor, esteve nos Mundiais dos Estados Unidos e de França, ainda que longe do banco de suplentes, e aprendeu as três lições mais importantes: ouvir, ver e estar atenta, algo que casa muito bem com a sua personalidade discreta e que a ajuda a manter a concentração em todos os momentos. “Não me sinto um bicho estranho entre tantos homens. Estou tão focada nas minhas tarefas que não noto nada de estranho à minha volta”, contou em 2006 ao ABC, numa das raras entrevistas que deu ao longo dos mais de 30 anos de serviço à Federação.

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Em 2010, quando Espanha conquistou o Campeonato do Mundo, Silvia não conseguiu evitar que Puyol recebesse a Rainha Sofia, no balneário, com apenas uma toalha à cintura

Em 2002, quando Julián del Amo decidiu reformar-se, o então selecionador Jose Antonio Camacho recomendou o nome de Silvia Dorschnerova para o substituir. Del Amo tinha deixado precisamente essa indicação e a integração da nova delegada técnica foi praticamente perfeita. A estreia no banco de suplentes, ao lado de Camacho, aconteceu em fevereiro de 2002 — e num particular contra Portugal que acabou empatado com golos de Jorge Costa e Morientes. “Sentei-me no banco pela primeira vez num jogo em Montjuïc [Barcelona]. O Camacho era o treinador e empatámos com Portugal. Nunca vou esquecer essa data. Estava muito nervosa mas correu tudo bem”, revelou, na mesma entrevista ao ABC, recordando a partida de preparação para o Mundial 2002 em que António Oliveira era o selecionador nacional português e a seleção espanhola tinha já nomes como Casillas, Puyol e Xavi mas também ainda Baraja, Míchel Salgado e Mendieta.

Nessa altura, há praticamente 20 anos, Silvia Dorschnerova assumiu as funções que desempenha até aos dias de hoje: em campo, comunica as substituições ao quarto árbitro, recebe os jogadores que saem do jogo, regista os dados de cada partida e mantém a ordem no banco; fora de campo, é o principal elo de ligação com a UEFA e a FIFA, trata de assuntos como a rega e o corte da relva, o local de aquecimento dos jogadores e a existência de pausas para hidratação e ainda é a principal responsável pelas logísticas das viagens, pelos passaportes, pelos vistos e pelas acreditações de todos os elementos da comitiva espanhola. Em resumo, é quase a mãe de toda a seleção.

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“No banco, temos de segurar as reações. Fico de mau humor quando o meu filho me diz que me viu na televisão e que estava muito feliz. Mas, às vezes, não conseguimos reprimir a tensão. Às vezes apetece-nos saltar, gritar, brincar… Mas depois voltas logo a ser racional e percebes que tens de manter a serenidade e a tranquilidade e transmitir isso mesmo. Quando há uma entrada mais dura, os jogadores saltam todos do banco e tens de dizer ‘fiquem tranquilos, sentem-se’. Se eu também ficar nervosa, não consigo transmitir essa tranquilidade”, explicou Silvia, recentemente, em declarações expostas no livro “La Roja por dentro”, sobre a seleção espanhola.

De 2008 a 2012, em meros quatro anos, Espanha venceu duas vezes o Campeonato da Europa e uma vez o Campeonato do Mundo. Foi o período mais bem sucedido da história da seleção espanhola, assim como o período mais bem sucedido de qualquer seleção na história do futebol internacional — e Silvia estava lá, no banco de suplentes, enquanto braço direito de Luis Aragonés e Vicente del Bosque. Para a história, dessa fase, ficam os únicos dois episódios conhecidos de um universo que, certamente, terá milhares: o momento em que se rendeu à euforia e permitiu que Casillas a levantasse do chão, em pleno relvado, logo depois da conquista do Euro 2008, e o momento em que teve de colocar ordem no balneário para a visita da Rainha Sofia, logo depois da conquista do Mundial 2010, sem chegar a tempo de evitar que Puyol cumprimentasse a monarca apenas com uma toalha à cintura.

Quando Espanha deixar o Euro 2020, seja na meia-final ou depois da final, Silvia Dorschnerova deixa a seleção espanhola depois de quase 20 anos como delegada técnica e mais de 30 como funcionária da Federação. Se a equipa de Luis Enrique conquistar o troféu em Wembley, no próximo dia 11 de julho, grande parte da vitória será de e por Silvia.