Enviado especial do Observador, em Tóquio

“Nem tenho palavras…”. A voz embargada, os olhos de quem tinha estado a chorar e se preparava para mais uma ou outra descarga, o tornozelo direito ligado com uma fita elástica castanha mal amanhada de quem tentou ir à procura de resolver um problema que naquele contexto dificilmente poderia ter solução. Pouco depois de ter passado pela zona mista, Liliana Cá ainda viu passar numa cadeira de rodas a americana Sandi Morris, com um saco de gelo na zona da anca/coxa esquerda. De disciplinas diferentes, tinham um ponto comum sem saber.

Numa fase em que estava no quarto lugar da final do disco, a portuguesa de 34 anos preparava-se para fazer a sua terceira tentativa já com chuva mais forte mas acabou por ter uma queda com impacto. Do lado oposto, era Morris que dizia aos juízes que não havia condições para continuar também a qualificação do salto com vara debaixo daquele temporal. Um minuto depois, tudo parou menos as corridas de pista mas o mal já estava feito e, em vez de descansar, Liliana Cá estava sobretudo a tentar remediar as mazelas daquele deslize que fez com que a rótula saísse um pouco do sítio e que ganhasse até algum receio no próprio movimento de lançamento. Na segunda metade, a surpresa foi mesmo a germânica Kristin Pudenz bater o seu recorde pessoal, o que lhe valeu uma prata atrás da nova campeã, a americana Valarie Allman, e à frente da cubana Yaime Pérez.

Liliana Cá, depois de ser superada pela croata Sandra Perkovic, acabou na quinta posição. E foi a falar naquele que foi o melhor lugar de Portugal além das medalhas de Patrícia Mamona e Jorge Fonseca e do quarto lugar de Auriol Dongmo (Catarina Costa também foi em quinto) que chorou, sorriu e sorriu a chorar ao mesmo tempo.

“Estou feliz mas não estou tão feliz como podia estar porque sabia que podia fazer mais, estava a sentir-me bem. Aquela queda acabou por me condicionar bastante, fiquei bastante insegura e não consegui fazer mais nada… Se estou com dores ainda? Estou… No último lançamento já não dava mais, o lugar já era bom e se era só para estragar mais o corpo mais vale parar e preparar para o próximo ano…”, começou por explicar sobre a queda.

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“Estava a sentir-me bem, de lançamento para lançamento estava a tentar melhorar aquilo que não tinha feito no lançamento anterior. Depois da queda, tive de ligar o pé [esquerdo], tive que fazer gelo no joelho direito. Já tinha uma tendinite, depois com o joelho a deslizar ficou… A minha rótula sai do lugar e ao deslizar ela saiu um bocadinho e voltou ao lugar, não dava para mais. O primeiro lançamento foi para marcar e para depois me sentir mais segura para os outros. Medalhas? Podia ter feito melhor, isso podia ter feito melhor. Arrisco a dizer que podia bater outra vez o recorde nacional. Depois dependia dos centímetros mas estava na luta”, acrescentou.

Depois de uma carreira intermitente, onde passou pelo Sporting e pelo Benfica (neste caso uma passagem mais curta) além dos ingleses do New Ham & Essex Beagles quando viveu longos anos em Inglaterra, Liliana Cá esteve cinco anos sem competir mas voltou a ser desafiada pelo seu treinador Luís Herédio. O resultado viu-se esta segunda-feira em Tóquio, depois de já ter batido no final de fevereiro o recorde da saudosa Teresa Machado, a grande referência que teve como atleta e que foi um das melhores atletas nacionais de sempre nas disciplinas técnicas. Hoje no Novas Luzes, um clube em Loures, fez jus à atleta que partiu em fevereiro do ano passado.

“Quando voltei era só mesmo para brincar mas a brincadeira começou a ir longe demais… [risos] Chegou a Tóquio. Sou grata ao Herédio pelo que fez por mim, pelo que continua a fazer por mim e agradeço também aos meus filhos que continuam a ter muita paciência por estar sempre ausente. Tudo o que faço por eles, ao falhar deixa-me completamente triste…”, disse já entre lágrimas, recordando Enzo Rafael e Aaron. “São lágrimas de raiva e frustração, as duas… Eu sei que não tenho razão para estar triste mas gosto de fazer as coisas até ao fim, quando fico com as coisas a meio começa-me a apertar o coração. O pensar que podia, que devia, não gosto disso. Quando fui falar com o meu treinador e explicar o que tinha, ele disse-me que por ele podia desistir. Fiquei a chorar, não sou de desistir. Por isso é que fui fazer os outros dois”, acrescentou a esse propósito.

“Quando penso no quinto lugar, penso que podia ter feito melhor. Mesmo que conseguisse na mesma só o quinto lugar, sentia que conseguia fazer mais metros e isso não me deixa totalmente feliz, não sei até onde podia ter chegado. Se a Teresa estará orgulhosa? Ela sempre me disse quando era miúda que queria que eu batesse o recorde nacional dela e ao fazer isso e vir a uma final olímpica, ficar nos cinco primeiros é muito bom, mesmo em termos de metros fiz a melhor marca no disco nos Jogos. Sei que ela está orgulhosa porque sempre disse que queria alguém que fizesse melhor. A última vez que falei com ela foi há dois anos, nos Campeonatos de Portugal em Vagos. Ela estava muito doente mas falou connosco, deu conselhos, disse que nós tínhamos de ficar satisfeitos porque na altura dela não tinha nem metade do que nós tínhamos, materiais e condições… Foi a última vez que falámos”, destacou, colocando já o enfoque nos Europeus de 2022 onde vai à procura de uma medalha.