Enviado especial do Observador, em Tóquio

Começou quase por acaso. Aquela ideia que meia dúzia de amigos que estão juntos num jantar atiram para o ar do nada, que pode parecer a coisa mais absurda imaginária mas que durante alguns segundos faz até mais sentido do que pode aparentar. Foi assim, em 2017, que surgiu uma hipótese out of the box para haver uma improvável dupla candidata à liderança dos EUA: Gregg Popovich como presidente, Steve Kerr como vice (ou como o primeiro chegou a dizer, a mesma tática mas com a ordem invertida). Kevin Garnett foi dos primeiros a “comprar” a ideia, Shaquille O’Neal chegou mesmo a aparecer na TV com uma camisola azul dos democratas onde constavam os dois nomes. “Não vai acontecer. Cada um é feito para o que tem de ser e não temos aquilo que é necessário para a função”, assumiu Pop. Assim ficaram, como críticos da liderança de Donald Trump, defensores de mudanças de fundo na sociedade e rostos de um país melhor via desporto.

Kerr, antigo base que ficou sobretudo conhecido por fazer parte das equipas campeãs dos Chicago onde se encontrava Michael Jordan, chegou a ser treinado por Popovich. O técnico encontrou nele literalmente o seu prolongamento em campo, numa relação estreita que nunca se perdeu na linha do tempo até quando os seus espaços se cruzaram, como aconteceu quando Kerr liderou os super Warriors campeões onde estavam Kevin Durant e Draymond Green, os grandes líderes da equipa de basquetebol dos EUA em Tóquio. Os astros pareciam mesmo alinhados naquele que seria um dos grandes desafios da dupla. Talvez o maior de todos.

No final, a vitória dos EUA frente à França por 87-82, vingando o desaire inicial na primeira jornada da fase de grupos, foi sobretudo um alívio. Um peso que saiu de cima. Um momento com muitas emoções. “Tem sido bom passar mais tempo com ele [Popovich]. Rimos, divertimo-nos, temos conversas que são realmente interessantes”, contou Steve Kerr ao San Francisco Chronicle. Cinco décadas depois, o discípulo ajudou a que o mentor resolvesse uma das poucas coisas mal resolvidas na vida e que estava ligada aos Jogos Olímpicos.

Filho de um pai sérvio e de uma mãe croata, Popovich nasceu em Indiana e jogou quatro anos como base na Academia da Força Aérea, acabando na última temporada como capitão, melhor marcador e campeão. Assim, e depois de ter acabado a sua licenciatura em Estudos Soviéticos com aprendizagem de treinos de inteligência (o que ainda o fez considerar numa carreira no CIA), teve a oportunidade de ir aos treinos que iriam decidir a equipa que se apresentaria nos Jogos de 1972. Sendo um dos melhores, a entrada seria quase garantida. Não foi, por política de quem fazia a escolha. Não mais esqueceu essa desilusão, como escrevia a Fox Sports.

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Com essa ferida aberta do passado da qual não costuma falar, e com o peso de uma eliminação precoce no Mundial de 2019 frente à França que atirou para fora de prova o grande candidato à vitória final, Popovich, uma espécie de Deus todo poderoso da NBA e do basquetebol americano, tinha de ganhar mesmo sabendo que algumas das “armas” que tem ao seu dispor ficavam agora de fora por causa dos protocolos restritos da organização por causa da pandemia. Aliás, os EUA, equipa masculina e feminina, estavam no Hilton, a cerca de uma hora de Saitama, numa espécie de Dia da Marmota, onde o máximo que faziam era deixar o telefone e a acreditação no quarto para dar uma volta perto do hotel. No caso de Steve Kerr, a Netflix também ajudava bastante (a segunda temporada de Ted Lasso esteve agora no topo das suas preferências) mas o que se via mais eram mesmo os jogos dos outros. A comida era garantida por um chef que veio com as equipas mas não havia qualquer hipótese por exemplo de ir comprar um vinho pelas regras de Tóquio-2020.

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Uma das estratégias de liderança de Popovich estava amputada. Pop, como também é conhecido, tem por hábito agarrar na equipa técnica e às vezes em jogadores para ir fazer um jantar pós-jogo em restaurantes que são um pouco mais exclusivos e onde o vinho de qualidade é uma obrigatoriedade – é tanto assim que tem mesmo uma lista de espaços em todas as cidades onde existem equipas da NBA. Aqui, como contou o The Athletic, o máximo que havia era o que sobrava do próprio hotel ou o que o chef conseguisse arranjar. Ainda assim, não foi preciso. E o trabalho feito pela equipa técnica com os jogadores, sobretudo depois de algumas derrotas em jogos de preparação e o desaire a abrir com a França, teve mesmo resultado.

Após um triunfo numa final que em termos de qualidade não foi bem aquilo que era esperado, mas que teve o condão de ser o encontro mais parecido com o normal em termos de assistência que poderia haver (estariam mais de 1.000 pessoas na Saitama Super Arena, entre jornalistas, voluntários e outras comitivas), Kevin Durant e Draymond Green foram dois dos mais entusiastas a celebrar a medalha de ouro, andando com uma bandeira às costas após a quinta vitória consecutiva nos Jogos, desta vez aquela que menos pessoas estavam a considerar ser possível mediante o nível que a equipa apresentou nos primeiros jogos realizados.

“Estamos felizes por ganhar esta noite [que na verdade era final da manhã em Tóquio] mas valorizamos o que fez a equipa francesa, que tem um bom grupo e formam uma grande equipa. Estamos muitos felizes pela forma como conseguimos representar o país e pela maneira como conseguimos subir o nosso nível em muito pouco tempo. Todos os títulos que conquistei na minha carreira são especiais mas este envolveu também a maior responsabilidade que já senti. Agora sinto-me leve, só quero voltar ao hotel e poder ter algo…”, atirou na conferência de imprensa após a final, provocando vários sorrisos na sala de jornalistas que sabiam que o “algo” apontava a uma boa garrafa de vinho para partilhar entre aqueles que o rodeiam, enquanto Durant e Green destacaram o espírito de união de um grupo que sentiu as críticas que estavam a ser feitas nos jogos de preparação, que se uniu estando longe da família e que conseguiu ir buscar o ouro.

Em 2018, a Bloomberg Businessweek descreveu os cinco pilares fundamentais que justificam o sucesso de Gregg Popovich: dominar a sua própria sorte, ter sempre o seu trabalho feito, libertar a raiva de quando em vez e de uma forma estratégica, ampliar o seu mundo e aprender a conhecer as pessoas. Tudo com exemplos concretos, contados por quem de perto lidou com ele. “O rabugento e engenhoso treinador da NBA nunca escreverá um guia de aconselhamento de gestão que o negócio precisa. Assim, escrevemos por ele”, destacou a publicação. Mas todos esses pilares eram muitas vezes defendidos ou valorizados por uma grande refeição com uma boa garrafa de vinho à mesa. Agora, até sem isso Pop conseguiu dar a volta. E as muitas conversas que foi mantendo, com os adjuntos e com os jogadores, tiveram a capacidade de unir aquilo que parecia estar talhado a ser partido por demais adversários com muitas “vinganças” à mistura.