Em 2016, Carli Lloyd publicou um livro. Eram 256 páginas de um bestseller do New York Times que contavam a caminhada da miúda de Delran Township, um município de Nova Jérsia, até ao topo do futebol feminino mundial. Chamava-se “When nobody was watching”, enquanto ninguém estava a ver, em português. E dificilmente existiria melhor título para explicar a carreira de Carli Lloyd.

Esta segunda-feira, a norte-americana de 39 anos anunciou que vai deixar os relvados até ao final de 2021, depois de completar os últimos quatro particulares com a seleção em setembro e outubro e acabar a temporada com os NJ/NY Gotham FC da NWSL, a liga de futebol feminino dos Estados Unidos. “Quando me estreei com a seleção, em 2005, os meus dois objetivos principais eram tornar-me a jogadora mais completa que conseguisse ser e ajudar a equipa a ganhar troféus. Todos os dias em que coloquei um pé no relvado, joguei como se fosse o meu último jogo. Nunca quis levar nada como garantido, especialmente sabendo o quão difícil é chegar ao topo e o quão mais difícil ainda é permanecer no topo durante tanto tempo”, disse Lloyd no comunicado em que confirmou o final da carreira ao fim de década e meia em que se tornou, quase definitivamente, a jogadora mais importante da história da seleção norte-americana. Um comunicado onde o parágrafo mais importante, a declaração mais real, aparecia bem mais em baixo.

Carli Lloyd é capitã, bicampeã mundial e das melhores de sempre. Mas nos últimos três anos esteve “no fundo do poço”

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“Ao longo de todos os golos, de todos os troféus, de todas as medalhas e de todos os Mundiais, aquilo de que mais me orgulho é de ter sido capaz de continuar a ser eu, sem pedir licença a ninguém. A minha jornada tem sido dura mas consigo dizer honestamente que me mantive fiel a mim mesma, às minhas colegas, aos meus treinadores, à comunicação social e aos adeptos ao longo de toda a minha carreira. E é disso que mais me orgulho. Toda a gente vê os momentos de glória mas eu estimei o trabalho nos bastidores e todas as adversidades que tive de ultrapassar para chegar a esses momentos de glória”, disse a jogadora. Ela que sempre foi apenas e só Carli Lloyd, “sem pedir licença a ninguém”. E isso não só foi mais do que suficiente como fez história ao longo de mais de 15 anos.

Como a própria disse, Lloyd estreou-se pela seleção dos Estados Unidos em 2005. De lá para cá, somou 312 internacionalizações (é a segunda mais internacional da história do país, apenas atrás de Kristine Lilly), 128 golos, dois Campeonatos do Mundo, duas medalhas de ouro olímpicas e uma de bronze. Esta última, a de bronze, foi conquistada nos recentes Jogos Olímpicos de Tóquio — onde a tristeza depois da eliminação com o Canadá, que afastou as norte-americanas da disputa pelo ouro, contrastou com a explosão de felicidade depois da garantia do bronze, com a vitória contra a Austrália. Ainda assim, as fotografias de Carli Lloyd após o apito final contra as canadianas, sentada em cima de uma bola e praticamente sozinha no relvado, confirmaram algo que já todos sabíamos: aos 39 anos, já ciente de que a carreira está prestes a terminar, continua a ser uma das jogadoras mais competitivas que alguma vez pisou os relvados do mundo inteiro.

O golo que Lloyd marcou na final do Mundial 2015, quase a partir do meio-campo, é ainda hoje considerado um dos melhores de sempre

Seleção à parte, embora tenha sido a representar os Estados Unidos e com a braçadeira no braço esquerdo que se tornou uma estrela internacional, Lloyd representou Central Jersey Splash, New Brunswick Power, South Jersey Banshees, New Jersey Wildcats, Chicago Red Stars, Sky Blue FC, Atlanta Beat, Western New York Flash, Houston Dash, Manchester City e NJ/NY Gotham FC. Apesar da breve passagem pela Europa, nos citizens, a jogadora deixou por concretizar o sonho de conquistar a Liga dos Campeões, alcançando apenas uma Taça de Inglaterra enquanto esteve em Manchester. Em 2015, ao lado de Lionel Messi, foi considerada a melhor jogadora de futebol do mundo — meses depois de realizar uma das melhores exibições da história moderna do futebol feminino.

Na final do Mundial de 2015, no Canadá e com outras estrelas como Rapinoe, Morgan ou Heath, os Estados Unidos golearam o Japão na final e tornaram-se campeões do mundo pela terceira vez na história e pela primeira desde 1999. Nesse dia de julho, há seis anos, Carli Lloyd entrou em campo com a responsabilidade da braçadeira, carimbou um hat-trick que foi o primeiro no futebol masculino e feminino na final de um Mundial e ainda marcou um golo extraordinário, candidato ao Prémio Puskás desse ano, onde acertou na baliza a partir do meio-campo. Dias depois de colocar a medalha ao pescoço e fazer capas de jornal em grande parte do mundo, voltou ao que melhor sabe fazer: dezenas de séries de flexões no fim dos treinos, quando já todos tinham deixado o relvado, numa dose extra de trabalho que sempre a colocou um nível acima dos demais.

Enquanto ninguém estava a ver, Carli Lloyd chegou ao topo e nunca mais voltou a sair. E não voltou a existir um dia em que ninguém estivesse a ver.