As dinâmicas da população, inclusive a sustentabilidade demográfica, e a descarbonização, com a redução do uso do automóvel, são apontadas por especialistas ouvidos pela Lusa como grandes desafios das cidades portuguesas aos quais o poder local pode responder.

“As grandes questões que se colocam são relativamente à dinâmica da população – por um lado, o envelhecimento demográfico da população, que se traduz por este aumento que para fins estatísticos se considera as pessoas com 65 e mais anos pessoas mais velhas e, por outro lado, […] o aumento da natalidade“, afirma a especialista em Demografia e Gerontologia Stella da Câmara.

Em declarações à agência Lusa a pretexto das eleições autárquicas de 26 de setembro, numa reflexão sobre os desafios do poder local nos próximos anos, Stella da Câmara defende que as políticas têm de espelhar agora a maior longevidade da população portuguesa, pelo que “era bom que o poder local fosse amigo de todas as idades”, das crianças às pessoas idosas.

O decréscimo da população em Portugal, confirmado nos dados preliminares dos Censos 2021 – que contabilizam 10.347.892 residentes, menos 214.286 do que em 2011 -, resulta da baixa natalidade, pelo que “os candidatos às eleições autárquicas referem sempre as questões da natalidade, que é preciso aumentar a natalidade”, aponta a especialista.

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O aumento da população, considera, pode passar por “uma solução mais plausível, pelo menos no curto prazo”, que é a atração de imigrantes jovens e que possam vir a ter filhos, mas é preciso saber exatamente o que se quer, se são “as questões da quantidade ou de qualidade”.

A questão da quantidade é exatamente aumentar. Relativamente às questões da qualidade, eventualmente se calhar poderíamos fazer uma aposta que é, por exemplo, os nossos jovens deveriam ser cada vez mais valorizados, e a valorização também passa muito não só pelo aumento das competências profissionais e educacionais, mas que estes aumentos também se traduzissem depois na valorização material, ou seja, na questão dos seus salários”, adianta.

Contudo, para tal seriam necessários “grandes quantitativos de imigrantes”, o que “não vai acontecer”, pelo que há que repensar este ciclo de vida em que as pessoas tendem a viver cada vez mais.

Entre as medidas que o poder local pode implementar para incentivar o aumento da natalidade, além de creches gratuitas, estão o apoio na área da habitação e na promoção de emprego, assegurar a oferta de escolas, centros de saúde e transportes públicos, enumera a demógrafa, realçando ainda a resposta das autarquias às questões do envelhecimento da população, com o serviço de apoio domiciliário ou até a ajuda ao conceito de ‘ageing in place’ de envelhecimento na casa e na comunidade, em vez da opção de institucionalização em lares.

Stella da Câmara sugere também o conceito das “cidades dos 15 minutos”, em que as pessoas demoram 15 minutos a chegar ao trabalho ou a serviços essenciais do dia a dia, para melhorar a qualidade de vida da população, inclusive dos idosos.

“Não se podem delinear estratégias sem primeiro saber ‘quem somos e como somos’, que é para em termos estratégicos também saber que medidas é que hoje adoto para depois serem consequentes e serem sustentáveis amanhã”, sustenta a especialista.

Investigador na área do Urbanismo e do Ordenamento do Território, David Vale afirma que o grande desafio, neste momento, é a questão da descarbonização, através da “tentativa de redução da utilização do automóvel nas cidades e a sua substituição por modos de transporte mais sustentáveis”.

“Se bem que pareça um desafio um bocadinho focado na questão exclusivamente da mobilidade e dos transportes, na realidade cruza as questões da habitação com as questões dos transportes e da mobilidade e da qualidade do espaço público”, argumenta o especialista, sublinhando que nas cidades, de uma forma geral, os locais com melhor acessibilidade em transporte público e em bicicleta e a pé correspondem muitas vezes aos locais com o preço metro quadrado da habitação mais elevado.

Há uma equação que as famílias têm de fazer entre “viver num sítio mais caro para poderem estar mais próximo dos seus destinos do dia a dia ou viverem num sítio mais afastado, mais acessível, mas que depois, naturalmente, lhes cria uma dependência ao automóvel da qual é difícil libertarem-se”, explica.

David Vale refere que algumas estruturações do território continuam com uma forma de localização das atividades que não suporta um padrão de mobilidade mais sustentável, nomeadamente a construção de novos hospitais, novos centros comerciais e universidades, que se designam como os grandes geradores de viagens, em locais que não estão estruturados ao nível da rede de transporte público e não têm boa acessibilidade nos modos ativos, andar a pé ou de bicicleta.

Desenha-se e estrutura-se a cidade a pensar que as pessoas vão aceder a esses locais em automóvel“, critica, defendendo que é preciso estancar esta tendência de dispersão urbana, porque atividades geradoras de grandes quantidades de pessoas que têm de se deslocar diariamente devem estar localizadas em sítios que permitam a escolha na acessibilidade.

Na perspetiva do especialista, “um erro urbanístico é um erro que perdura vários anos”, pelo que cidade que se vai ter daqui a 40 anos é muito parecida com a cidade que se tem hoje: “A mudança dos usos do solo é uma mudança que é lenta, não é uma coisa rápida, portanto precisamos de formas de aceder a esses locais.”

O futuro passa por uma visão integrada dos modos de transporte, em que não há um modo primordial, a lógica é ter “um ecossistema de modos de transporte” que permita aceder ao destino final, indica o urbanista, ressalvando que é difícil promover a circulação em bicicleta sem ir buscar algum espaço que, neste momento, está afeto a outro modo.

As ruas não têm espaços em branco“, alerta o investigador, sublinhando que, nestas adaptações, se tem tirado, erradamente, espaço ao peão.

As cidades devem dar hipóteses de escolha do modo de transporte, com a melhoria das acessibilidades e das condições de circulação pedonal, assim como o reforço dos transportes públicos, da rede ciclável e dos modos de micromobilidade como as trotinetes, propõe o investigador, destacando o impacto positivo dos modos de deslocação suave, como andar a pé ou de bicicleta, que contribuem para reduzir a sinistralidade rodoviária e diminuir a poluição atmosférica e sonora.

No entender de David Vale, “a cidade é um sítio para estar, é um sítio para viver, é um sítio para usufruir, é um sítio de lazer e não é um sítio de circulação, seja de automóveis, seja do que for – não é um sítio para passar, é um sítio para estar”.