“O meu amigo Carlos do Carmo”. Foi esta a memória que mais vezes saltou do palco da Altice Arena, esta terça-feira à noite, em direção ao público. O fadista — o “mestre”, como também se ouviu — foi homenageado na noite “Fado é Amor”, que juntou nomes como Carminho, Tito Paris, Camané, Dino Santiago, Jorge Palma, Pedro Abrunhosa ou Mariza, entre outros. Na voz de todos, sempre a palavra “amigo”.
Entre plateia e palco houve uma espécie de abraço coletivo, quase duas horas num encontro entre gente conhecida para ouvir as canções mais populares de Carlos do Carmo, desde a “Lisboa Menina e Moça” com todos em palco, claro, ao “Homem das Castanhas” na voz de Agir (mais solene, de fato, a puxar dos galões da voz mais escondida na sua discografia), até às “Canoas do Tejo” com o capitão Ricardo Ribeiro. Mas as portas desta celebração abriram-se com António Serrano, virtuoso da harmónica, com um medley pela obra de Carlos do Carmo. Agradeceu a oportunidade de estar ali para abrir o concerto e voltaria para o encerrar.
Jorge Palma em palco, com imagens da carreira de Carlos do Carmo sempre em fundo, relembrou que o “tema seguinte” tinha sido feito em parceria com o fadista português: “Um dia o Carlos disse-me que queria que lhe escrevesse uma canção, mas não podia ser fado, porque eu não percebia nada de fado. Andou anos a perguntar-me pela canção, até ao dia em que fui a casa dele e da mulher apresentá-la. Gostou muito”, partilhou Palma. Falava de “Canção de Vida”.
Pedro Abrunhosa, que em 1995 escreveu “Manhã” para Carlos do Carmo, tinha uma surpresa preparada para o público, maioritariamente mais velho, que foi perdendo a timidez para acompanhar os músicos com o passar dos minutos e das canções, e que quis recordar uma presença constante durante décadas, quase 60 anos de carreira, muitas digressões, discos, um “Homem na Cidade” mundo fora.
Mas voltemos a outro homem, “careca e disléxico a cantar” (dito pelo próprio), que quis homenagear um “franco amigo de cabelo maravilhoso e voz de Deus”, ao dar a sua interpretação do “Fado do Campo Grande” (1977), do álbum Homem na Cidade, marco da colaboração entre Carlos do Carmo e Ary dos Santos.
E se Pedro Abrunhosa quis atirar-se para novas interpretações, Camané veio mostrar um lado mais tradicional. Pode ter sido comedido, silencioso, pacato, preferir a palavra cantada à palavra dita, mas foi um desabafo emocionado. “Fiz anos ontem, portanto, fazia anos no dia antes do Carlos do Carmo. Costumávamos falar à meia noite”, disse. E bastou o que disse para se perceber o que se queria dizer. Se não fica percetível, vamos à música “Vim para o Fado”, interpretado por Camané, que canta:
“Já tenho novos amigos
Que me oferecem de beber
Mas ninguém mata esta sede
Esta sede de esquecer”
Se a homenagem foi pintada com amor e amizade, Dino Santiago quis acrescentar ainda mais sabor, contemporâneo, balançado, mais Nova Lisboa, mais “Putos” versão 2021. Sem guitarra portuguesa, nem baixo, nem nada, a sua voz numa cama de eletrónica subtil. “É bom ver este Portugal mais inclusivo, mais amoroso”, afirmou o cantor português.
E silêncio? Daquele que arrebata porque a sala está toda especada a olhar para o que se passa em palco? Quase não houve. Mas houve um, apenas um, e esse foi protagonizado por Carminho com “Gaivota”. Foi escrito por O’Neill em 1969, evangelizado por Amália, mas também por outros fadistas como foi o caso de Carlos do Carmo. Carminho assumiu o papel, não foi uma questão de responsabilidade, foi carinho e honra, até ao arrepio.