O Open da Austrália que começou por ser falado quase apenas à luz de Novak Djokovic tinha o seu último capítulo de novo com o sérvio na sombra. Havia uma de duas hipóteses: ou Rafael Nadal se tornava no jogador com mais títulos no Grand Slam ou Daniil Medvedev subia a número 1 do ranking mundial. Aquele que sairia sempre a perder da final de Melbourne tornava-se ainda mais aquilo que sempre foi, uma figura omnipresente do primeiro Major da temporada. Em qualquer cenário, a história estava pronta a ser feita.

A final em que Djokovic vai perder: Medvedev pode chegar a número 1 do ranking, Nadal pode tornar-se o jogador com mais Grand Slams

O russo partia com ligeiro favoritismo, nem tanto pela questão do peso histórico na competição onde tinha chegado antes apenas uma vez à final (derrota com Djokovic no ano passado) mas pela regularidade que foi mantendo desde que conseguiu o triunfo no US Open diante do sérvio em 2021. E foi isso que Medvedev apresentou em Melbourne, num caminho que enfrentou adversários complicados como Nick Kyrgios, Félix Auger-Aliassime ou Stefanos Tsitsipas mas onde conseguiu sempre recuperar o seu melhor jogo até para anular dois sets de desvantagem, como aconteceu com o canadiano. Entre uma consistência de topo e algumas reações a quente contra os árbitros, chegava agora uma espécie de momento da verdade.

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Além de poder chegar pela primeira vez na carreira a líder do ranking mundial, destronando um Djokovic que se tornou em março de 2021 o jogador com mais semanas nesse estatuto superando Roger Federer, Medvedev poderia ter a primeira verdadeira afirmação de um jogador contra a era dos Três Mosqueteiros: desde 2016 que não havia dois Grand Slams consecutivos sem triunfos de Djokovic, Nadal ou Federer mas, mais do que isso, desde 1999-2000 que um jogador que não esses três que dominaram os últimos longos anos do ténis mundial conseguia ganhar dois Grand Slams seguidos (na altura foi Andre Agassi).

Do outro lado, o regressado Nadal e mais um capítulo da história de superação que o colocará sempre num patamar à parte de todos os outros no mundo do ténis. Recuando umas semanas no calendário, o espanhol contraiu Covid-19 num torneio de exibição, esteve em dúvida para Melbourne, conseguiu recuperar da forma que pretendia e voltou à final de um Grand Slam mais de um ano depois (474 dias depois, de forma mais precisa) depois de um triunfo exigente nos quartos a cinco sets com o canadiano Denis Shapovalov e daquele que foi o 500.º triunfo em jogos em piso duro só atrás de Federer, Djokovic e Agassi.

Agora chegava o momento pelo qual talvez não esperasse naquela luta pela última das coroas do maior número de títulos em Grand Slams. Aos 35 anos, Nadal não partia como favorito à conquista do Open da Austrália mas sabia também que, assim o físico lhe permitisse, tinha todas as condições para somar mais um Major em Roland Garros. Era como uma espécie de vida extra na elite do ténis mundial que constituía um desafio àquele que foi o melhor jogador do circuito nos últimos seis meses e um teste à capacidade de resistência de alguém que foi sofrendo um enorme desgaste numa carreira de exceção, sendo que, em Melbourne, partia com apenas uma vitória em 2009 entre quatro finais que depois perdera.

“Nesta altura o Medvedev é o jogador que mais gosto de ver, pensa muito à frente dos outros. Já o Nadal esteve seis meses sem jogar e aparecia numa final, como aconteceu com o Federer há cinco anos aqui no Open da Austrália com a mesma idade. O Medvedev tem a pressão de ser o melhor da atualidade em piso duro e de ter ganho um Grand Slam. Teve dificuldades no caminho até à final mas conseguiu superar tudo. Sendo alguém muito alto, consegue ter grande mobilidade, corre como os outros e ocupa todo o campo. Vai ser um jogo longo, que vai durar… O Medvedev é melhor jogador do que no ano passado, está também mais preparado mas o Nadal é uma lenda. Há essa vantagem ligeira do Medvedev mas vai ser um teste físico a ambos, daqueles que a certa altura parece que alguém vai cair e também com o plano das emoções à mistura, de saber quem reage melhor”, analisara John McEnroe, comentador do Eurosport que foi número 1 do mundo mas nunca ganhou em Melbourne, numa conversa com alguns jornalistas.

Sobre a parte da maratona, McEnroe tinha razão e aquilo que se afigurava como um encontro em três sets tornou-se uma maratona decidida em cinco parciais ao longo de mais de cinco horas. Sobre a parte de Medvedev ser melhor jogador, também não poderia estar mais certo. Sobre a parte de Nadal ser uma lenda, ainda menos dúvidas. E foi essa premissa que fez com que falhasse no prognóstico de vitória. Se o jornalista Victor Hugo Morales, aquele uruguaio que no Argentina-Inglaterra do Mundial de futebol de 1986 teve a melhor descrição do golo de génio de Diego Armando Maradona, estivesse em Melbourne só poderia repetir 36 anos depois a frase “De qué planeta viniste?”. As dificuldades que passou e aquilo que teve de superar para voltar a uma final do Grand Slam tornou-se quase pequeno perante a recuperação verdadeiramente épica frente a Medvedev. Rafa não é o maior dos maiores, Rafa fez por ser o maior dos maiores. E se a capa do jornal Marca no sábado tinha pouco mais do que a cabeça do jogador com o título “Tão grande que não cabe aqui”, agora vai ser preciso algo mais para descrever o indescritível.

O primeiro set mostrou sobretudo esse ligeiro ascendente do russo, que mesmo depois de ter visto Nadal aguentar dois breaks e fazer o 2-1 no seu serviço não se deixou levar pelas emoções, voltou a mostrar-se muito agressivo nos jogos do espanhol e conseguiu mesmo fazer duas quebras de serviço consecutivas ao espanhol, fechando o parcial com 6-2 em 42 minutos. Depois, a maratona dentro do jogo: num set completamente atípico em que Nadal e Medvedev conseguiram dois breaks cada, o russo salvou um set point e houve ainda uma invasão do campo por um ativista que pedia o fim dos centros de detenção para refugiados (um tema que ficou mais latente depois do caso de Djokovic) até ao 7-6 com 7-5 que fez o 2-0 após quase uma hora e meia (84 minutos, o dobro) mais a interrupção que se seguiu a esse momento.

A Rod Laver Arena estava maioritariamente a torcer por Rafa Nadal. E, verdade seja dita, até quando Jim Courier, outra antiga glória do ténis norte-americano, fazia perguntas nos final do jogo para aumentar o nível de empatia de Medvedev com o público, o russo não ia atrás. No entanto, os winners que valeram o triunfo no segundo set deixaram todos rendidos. E até mesmo a fabulosa recuperação de Nadal com 3-2, quando evitou três breaks, não mudou esse estado de espírito que tomara conta do recinto. Não mudou até haver a metamorfose do esquerdino, que se impôs no jogo de serviço do russo e fechou com 6-4.

O impensável naquela fase aconteceu, o impensável estava apenas a começar. Mais: depois de um terceiro set com mais de uma hora (64 minutos), o quarto parcial conseguiu ser ainda mais atípico no arranque entre um primeiro break de Nadal, uma resposta pronta de Medvedev e mais um break do espanhol num quinto jogo determinante para o que se seguiria no resto do encontro entre sete pontos de break que o esquerdino teve até fechar e a constante reação que o russo mostrava. Ao longo de quase uma hora (58 minutos), a batalha contra o adversário, contra os próprios e no caso de Medvedev contra o público ia conhecer um quinto e decisivo set depois de novo 6-4. A batalha iria perdurar ao longo de cinco horas e meia com três jogos chave a determinar tudo: o quinto jogo em que Nadal concretizou o break, a sexta partida em que o espanhol salvou vários breaks do russo para chegar ao 4-2 antes e o 6-5, com Nadal a conseguir fazer logo o contra break depois de ter perdido a primeira decisão no seu serviço (7-5).

E sobre o futuro Djokovic, o que poderá agora acontecer com o sérvio? “Não sei mesmo o que vai acontecer. Esperemos que as coisas estejam diferentes quando chegar Roland Garros, pode ser que as regras mudem mas da parte dele parece-me muito convicto nas suas crenças. Eu recordo-me que houve uma altura em que era ele, Medvedev, Tsitsipas e Rublev, nenhuma estava vacinado mas mudaram depois essa condição. Não acredito que faça dele uma má pessoa. Nos EUA temos também alguns casos no basquetebol e no futebol americano que têm decisões diferentes em relação a isso. Da minha parte, vacinei-me e tenho a dose de reforço. Sei o que faria na posição dele mas não posso decidir por ele. Há coisas que ainda não percebo. Se testou positivo vai depois dar uma entrevista? Ele é uma pessoa inteligente, não consigo perceber. Outra coisa: porque é que põem que não fez viagens, da Sérvia para Espanha? Não faz sentido. E com isto nem joga depois de ganhar nove vezes lá…”, referiu John McEnroe.