Publicado pela primeira vez em 1998, este romance de Houellebecq, que já conheceu uma edição em Portugal pela Relógio d’Água, tem sido encarado como a obra maior do autor francês. É o seu segundo livro e já aqui encontramos as principais marcas da sua prosa, a que não falta a tendência habitual para mergulhar na decadência.

As partículas elementares divide-se em três partes: “O Reino Perdido”, “Os Momentos Estranhos” e “Ilimitado Emocional”. Nesta divisão, seguimos as vidas de Michel e Bruno, meios-irmãos. O primeiro é um biólogo reputado, monástico, solitário, abstinente, que decide tirar um ano sabático; o segundo é professor de Literatura, viciado em pornografia, misógino, vítima do que Houellebecq apresenta como “a crise dos quarenta” e está em processo de mudança de vida. As diferenças entre ambos são estrondosas, mas as vidas ficam ligadas, para lá da proveniência, pelos processos sociais que marcam toda a França. A mãe de ambos, cristalizada nos anos 60, havia-os entregado a diferentes avós, partindo para a Califórnia para viver numa comunidade hippie. Ao longo do romance, que se pauta por uma degradação que vai consumindo as personagens, e que no caso de Bruno se manifesta pelo vício sexual, é dada aos dois uma oportunidade de amor final.

Os fios que o romance desenrolam são frequentemente imprevisíveis, mas arranjam sempre forma de envolverem a crise afectiva das personagens, que se estende à sociedade ocidental. E, ao passar por afecto, também passa por sexo, já que o romance está pejado de sequências de sexo explícito – e, convém não deixar por dizer, sempre misógino. Os comportamentos repulsivos de ambas as personagens terão talvez o objectivo de chegar a um qualquer ponto cinzento do inconfessável, mas a verdade é que tudo é excesso, sendo difícil ter-se empatia ou estar-se em cena com as personagens. Pelo contrário, a compulsão sexual mói, a tristeza dos irmãos não atinge, tudo parece, para o leitor, passar-se ao longe. Além disso, traz pouco à narrativa, já que parece palha inútil perante o panorama social, que funciona como propulsor das personagens. Assim, as descrições sexuais aparecem em demasia, quase sempre sem propósito, e moem por serem só degradação. Durante dezenas de páginas, parece haver pouco mais do que libido, e a narrativa nem empanca nem avança, formando-se naquilo, sendo incapaz de voar.

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Livro: As partículas elementares
Autor: Michel Houellebecq
Tradução: Miguel Serras Pereira
Editora: Alfaguara
Páginas: 384

Como é típico na prosa de Houellebecq, a sexualidade aparece como uma forma de decadência, mas o problema aqui é que a decadência nunca voa, nunca se interliga, parecendo mais uma desculpa para que se brade a perversão. Para mais, Houellebecq parece querer reduzir tudo o que é existência humana a uma pulsão sexual que nunca exclui a humilhação, o que funcionaria se se entendesse o propósito e se essas longas partes de prosa actuassem na narrativa.

No que Houellebecq escreve, os homens parecem sempre recalcados e ressabiados, e as mulheres nunca atingem muito mais do que o estatuto de paisagem. Seria diferente se isto fizesse parte da estrutura interna da narrativa, mas os comentários misóginos, que comummente aparecem a total despropósito, são mais uma forma de ver do que uma opção literária. E, a páginas tantas, torna-se cansativo que Houellebecq não consiga sair disto, bradando o ódio às mulheres como uma descrição neutra.

Claro que as acusações ao quão detestável é a prosa de Houellebecq não se podem prender a artifícios literários ou às composições internas do romance. Afinal, o romance não pode ter qualquer barreira moralizante, sob pena de se tornar numa forma de arte amputada à nascença. Contudo, o que se passa com Houellebecq é a sua permanente incapacidade de deixar de bater na mesma tecla e de não conseguir ver o mundo além do que o tolda. A forma como molda as personagens, mostrando sempre as mulheres como uma sub-categoria de pessoa, faz com que o leitor nunca deixe de notar a bandeira do ódio. A cada página, parece haver um parágrafo a bradar o ressabiamento. Isto nota-se tanto nos permanentes comentários humilhantes – que, mais do que sarcasmo, revelam pouco alcance na capacidade de criar um mundo –, como na forma como o autor assume descaradamente o masculino como neutro, até quando parece estar a descrever sem a intenção de provocar: “(…) esta famosa “crise dos quarenta” está muitas vezes associada a fenómenos sexuais, à busca súbita e frenética do corpo de raparigas muito jovens” (p. 28). Outras considerações à parte, o que se vê aqui é que “pessoas” equivale a “homens”, e esta é uma jaula da qual Houellebecq nunca consegue sair. A chave da literatura, que lhe permitiria ir a todo o lado, vasculhar todo o lado, tratar toda a matéria de forma horizontal, encrava num exercício de empatia que, como autor, Houellebecq é incapaz de levar a cabo.

Centrar a vida no sexo também acaba por saber a coisa pouca. Michel gere o declínio da sua sexualidade, Bruno procura exacerbá-la. Os dois parecem reféns do corpo, intimamente mutilados por uma facção da vida. Não é de somenos que os dois apareçam como filhos da cultura libertária, representados como mártires ou consequências de uma obsessão com o sexo que desagua sempre em devastação existencial. Pegando nisto, Houellebecq exagera nos seus intentos ao simplificar em absoluto, reduzindo a vida ao chavão, não alcançando qualquer subtileza na sua criação. Assim, as personagens partem de uma ideia de biologia que reduz o humano ao estatuto de animal, sendo-lhes retirada, em simultâneo, qualquer humanidade, e o autor faz equivaler biologia a formas de cultura, não conseguindo sair do clichê (exemplos: a mulher pode amar, o homem não; depois de um divórcio, os filhos são empecilhos para os homens, porque estes não estão concebidos para os cuidados sem a moldura da família). As personagens, ao serem mecanizadas pela biologia, não atingem o cinzentismo necessário à criação do vínculo de empatia com o leitor.

A opacidade da fórmula revela-se pela derradeira vez no desenlace, já que a hipótese de redenção é destruída, o que alinha bem com o tom desencantado de todo o livro. A prosa, pelo meio disto, consegue ser coesa.

A autora não escreve de acordo com o Acordo Ortográfico