Era uma vez uma célula que se multiplicou até se transformar nos cem triliões de células que somos nós, os seres humanos. O crescimento e desenvolvimento do embrião e do feto é isto mesmo: a multiplicação e especialização de células. É isso que nos faz crescer em tamanho e em capacidades até nos transformarmos num bebé, pronto para nascer. E é assim que tudo começa. Ora, as operárias deste milagre da multiplicação são as células estaminais, também chamadas células-mãe, que têm duas capacidades básicas: auto-renovação e diferenciação.

No cérebro adulto existem cerca de 86 mil milhões de neurónios e todos eles têm origem nas células estaminais neuronais. Quase todos os neurónios são formados durante a nossa vida intra-uterina, multiplicando-se rapidamente num processo chamado neurogénese, que quer dizer, literalmente, produção de neurónios.

O processo de divisão das células para gerar mais neurónios acontece durante o desenvolvimento [intrauterino]”, diz Patrícia Canotilho Grácio, investigadora de doutoramento no Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Nova Medical School. “O desenvolvimento de todos estes neurónios e outras células neuronais é conseguido através das células neuronais estaminais que, quando se dividem, dão origem a uma célula filha que fica igual à mãe e a substitui, e outra que se especializa e gera uma célula do sistema nervoso.”

Acontece que para processar tudo o que precisamos e responder adequadamente não bastam ao cérebro os seus cem mil milhões de neurónios. Eles precisam de ser diferentes. “Os neurónios que recolhem informação visual não são iguais aos que recolhem informação sonora”, exemplifica a investigadora. Na Drosophila – a mosca da fruta –, o modelo animal que Patrícia estuda, conhecem-se cerca de 3800 tipos diferentes de neurónios. Nos humanos, apesar de ainda não haver consenso, estima-se que possam chegar aos cinco mil.

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Mas a questão é: como, exatamente, é que eles ficam diferentes?

O facto de as células estarem em diferentes pontos do cérebro dá-lhes alguma variabilidade, porque estão expostas, naturalmente, a diferentes ambientes. Mas isso não chega para explicar todas as diferenças. “O que sabemos – e estamos a investigar melhor – é a variação que cada uma destas células neuronais estaminais vai sofrendo ao longo do desenvolvimento. É como se elas fossem envelhecendo, ganhando uma nova identidade com o passar do tempo e, assim, gerando também diferentes tipos de neurónios.”

No cérebro adulto existem cerca de 86 mil milhões de neurónios e todos têm origem nas células estaminais neuronais. Quase todos os neurónios são formados durante a nossa vida intra-uterina

É isto que Patrícia está a tentar entender e explicar melhor no projeto de doutoramento que está a desenvolver, financiado pela fundação “la Caixa”: como os genes expressos nas células neuronais estaminais mudam, conferindo-se novas identidades e fazendo com que deem origem a diferentes tipos de neurónios. “O objetivo do projeto é identificar os genes que regulam a identidade das células estaminais neuronais ao longo do tempo. Depois de identificar estes novos genes reguladores de identidade temporal, poderei estudar os seus padrões de expressão ao longo do desenvolvimento – onde e quando são expressos no cérebro – e a forma como influenciam o tipo de neurónios formados em momentos específicos.”.

Sobre o que faz – investigação fundamental – e para serve, Patrícia Grácio gosta de contar uma história que mostra “como acumular conhecimento sobre os mecanismos biológicos básicos acaba, um dia, por se transformar em algo muito útil”. É a seguinte: para fazer um teste PRC (Polymerase Chain Reaction) para diagnóstico do vírus SARS-CoV-2 é preciso expor enzimas a temperaturas entre os 55ºC e os 95ºC. A enzima que permite a realização dos testes PCR – a TAQ polimerase – foi descoberta nos anos 60 do século passado numa bactéria adaptada e resistente ao calor intenso – a Thermus aquaticus – encontrada nas fontes termais de Yellowstone (EUA) e do fundo do mar. “É o meu pitch de investigação fundamental: quem é que pensaria, na altura, que explorar o fundo do mar teria esta aplicação biomédica?”

Isto para dizer que as implicações futuras do trabalho que está a desenvolver podem estar longe da imaginação. Podem resolver problemas que ainda nem existem. Apesar disso, prevêem-se algumas em que este estudo potencialmente será útil: procurar com mais critério erros que dão origem a doenças do neurodesenvolvimento e perceber a formação de tumores, por exemplo.

Se estas células neuronais estaminais pararem de se dividir e de gerar neurónios muito cedo, podem levar a microcefalias – situações em que o cérebro não tem todos os neurónios e tamanho que precisa. Pelo contrário, se não pararem de se multiplicar na altura certa, isso pode levar a tumores do cérebro, que são o segundo cancro mais comum em crianças pequenas.”

Há estudos em Drosophila que defendem que esta incidência elevada de tumores na infância se deve precisamente a erros na regulação temporal: as células continuam a multiplicar-se quando deviam parar. São células velhas que ainda se julgam novas.

A investigadora de 27 anos, filha de uma professora de Biologia, sempre foi dada à área científica. Gostava de matemática, de físico-química, de biologia. Acabou por escolher o mestrado Integrado em Engenharia Biomédica, no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, porque não teria de abdicar de nenhuma dessas disciplinas e parecia-lhe uma boa porta para fazer investigação, que era o seu desejo.

O facto de as células estarem em diferentes pontos do cérebro dá-lhes alguma variabilidade, porque estão expostas, naturalmente, a diferentes ambientes. Mas isso não chega para explicar todas as diferenças

Entrou no curso já com um fascínio pelo cérebro. Depois, estudou as células estaminais e achou-as uma ferramenta com imenso potencial terapêutico. Juntou os dois interesses e, quando terminou o curso, já sabia que queria trabalhar em células estaminais na área da neurologia. “Perceber como é que o cérebro se forma, se calhar, é uma das melhores formas de entender as suas capacidades.”

Optou por não iniciar de imediato o doutoramento porque queria ganhar experiência e procurar a oportunidade ideal para trabalhar nessa área. Foi trabalhando, em vários laboratórios, em projetos que lhe foram permitindo uma aproximação ao que queria. Até que, no ano passado, surgiu a hipótese que desejava no laboratório de Regulação da Proliferação e Destino das Células Estaminais, no CEDOC, liderado pela especialista em biomedicina Catarina Homem, onde está a desenvolver o doutoramento.

“O que sabemos é a variação que cada uma destas células neuronais estaminais vai sofrendo ao longo do desenvolvimento., diz a investigadora. “É como se fossem envelhecendo, ganhando uma nova identidade com o passar do tempo e gerando também diferentes tipos de neurónios.”

Patrícia gosta de perguntar aos colegas mais velhos que vai conhecendo como é que chegaram onde estão. Lembra-se que já no secundário e na faculdade tinha este interesse pelo percurso dos cientistas. Eram pessoas que já estavam do outro lado do muro que ela também queria galgar e lia avidamente essas histórias de vida de quem tinha tido sucesso a fazer ciência. Ler ou ouvir esses percursos dava-lhe pistas sobre o trajeto que também ela queria seguir.

Hoje, já a caminho desse outro lado do muro, olhando para a sua curta carreira, acredita que a capacidade de trabalho foi – e é – um dos seus grandes trunfos. “Sou boa trabalhadora. Posso não ser a mais inteligente, posso não ser a mais rápida, posso não ser a que tem mais ‘talento natural’ ou mais facilidade, mas não faz mal, porque há uma coisa que eu posso controlar: o meu esforço. Empenho-me, persisto, dedico-me.”

Como é que os genes expressos nas células neuronais estaminais mudam, conferindo-se novas identidades e fazendo com que deem origem a diferentes tipos de neurónios? Essa é uma da questões que Patrícia quer ver respondida

Para quem procure o seu próprio caminho na investigação conhecendo o caminho dos outros, como ela fazia, escolhe este conselho: que a ciência não seja uma forma de a pessoa denegrir a sua visão de si própria. “Falhamos muito. Mas mesmo quando se passam os dias sem se ter nada de novo para mostrar, é importante lembrar que isso não é sinónimo de incapacidade: é porque a ciência é mesmo assim. A ideia pode ser difícil de interiorizar, mas quanto mais cedo se aprender a fazer isso, melhor.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Patrícia Grácio, atualmente a desenvolver investigação no Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Nova Medical School, foi uma dos 65 selecionados (sete em Portugal) – entre 1308 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. A investigadora recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 já encerraram. Os prazos para a edição de 2023 arrancam em novembro.