Publicado pela primeira vez em Portugal em 1997, com uma segunda edição em 2001, A cabeça perdida de Damasceno Monteiro volta às livrarias. O romance inspira-se na tragédia vivida por Carlos Rosa em 1996, um crime ainda hoje conhecido por “crime de Sacavém”. Rosa fora baleado na cabeça por um GNR, que, com cúmplices, para esconder a bala que denunciaria o autor do disparo, decapitou o homem, escondendo em lugares diferentes o corpo e a cabeça. Pegando nisto e voando a partir daí, Tabucchi criou um romance com atmosfera policial que, malgrado a cabeça separada do corpo no centro da narrativa, não deixa de ser divertido nem por uma página.

Será este o grande trunfo do autor. Partindo de uma tragédia, consegue ridicularizar as coisas. Em simultâneo, ao focar-se nas personagens periféricas, consegue tratar o drama com a leveza da distância, sem nunca deixar de escancarar o horror e o bizarro. Ao seguirmos Firmino, metemo-nos dentro da reportagem e da investigação jornalística. Vivendo em Lisboa, é mandado pelo editor do jornal O Acontecimento para trabalhar ao Porto, de forma a cobrir os desenvolvimentos da história que inquieta o país: como terá aparecido no Porto um corpo sem cabeça? O jornal é sensacionalista, quer encher de lágrima o olho e as páginas de sangue, e Firmino tem de escrever tendo isso em mente. Ao adaptar a escrita ao que é pedido pelo jornal, até pede desculpa. Sempre sente necessidade de justificar que não escreve assim sem ser obrigado. Afinal, e numa surpresa também cheia de humor, o jornalista do pasquim é um intelectual e tem outra coisa na cabeça: quer focar-se num estudo académico sobre o romance neorrealista português dos anos 50.


Título: A cabeça perdida de Damasceno Monteiro
Autor: Antonio Tabucchi
Editora: D. Quixote
Páginas: 224

A escrita é funcional e os diálogos são vivos. Para além de personagens que sabem a gente, ainda temos pedaços de prosa que, a sós, são obras de arte, até pelo fundo permanente de ironia. É o que podemos encontrar na escrita de Firmino no jornal, logo depois de ter atado pontas. O patrão pede-lhe “uma prosa comprida, o mais comprida possível” (p. 83), e ele apresenta um texto empolado, barroco, mastigado. Não dá ler os parágrafos sem pensar na expressão “encher chouriços”. Dois exemplos:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O cenário desta triste, tenebrosa e, acrescentaríamos ainda, truculenta história, é a risonha e laboriosa cidade do Porto. Nem mais: a nossa portuguesíssima Cidade Invicta, acariciada por doces colinas e sulcada pelo plácido Douro. Nele navegam, desde tempos imemoriais, os característicos rabelos que, em tonéis de carvalho, transportam das zonas do interior para as caves da cidade o precioso néctar que, engarrafado com esmero, tomará os caminhos dos mais longíquos países do mundo, contribuindo para a fama imortal de um dos mais apreciados vinhos do Globo.” (p. 83)

Um país de gente honesta e trabalhadora, que à noite regressa cansada aos seus lares, depois de um dia de dura labuta, e fica transtornada ao ler as descrições macabras que a imprensa livre e democrática como este jornal, se vê lamentavalmente obrigada a divulgar, embora o faça com o coração a sangrar.” (p. 84)

Claro, este estilo de Firmino contrasta abruptamente com o de Tabucchi.  Não se sente o solavanco, já que este ridículo e esta ruminação divertem, sendo o propósito ironiar com má prosa através de boa prosa. Assim, também isto é história.

Este é o artigo em que Firmino revela a identidade de Damasceno Monteiro. Ao investigar as pistas que tinha, e que incluíram uma conversa com Manolo o Cigano, que abre o livro, chega-se à cabeça separada do corpo, que pertencera a um rapaz que havia descoberto a rede de tráfico de droga comandada por um oficial da GNR. Manolo encontrara o corpo de Damasceno num terreno baldio ao lado não da sua casa, mas do seu acampamento, nos subúrbios dos subúrbios, zona onde a Câmara quis meter o povo cigano. E a pista estava lá desde o início. Manolo descrevera à polícia como o encontrara. Ora, tendo descrito a camisola que levava, porque é que fora divulgado que o cadáver estava em tronco nu?

As dúvidas de Firmino vão sendo as do leitor, porque a narrativa está bem montada e calibrada, e não é sequer de somenos a forma cheia de clichés com que Firmino chega ao Porto. Assim também se constrói um lisboeta. E, com uma narrativa divertida, que nunca perde o pendor humorístico, Tabucchi mete ainda em cena os abusos policiais, de onde o assassinato parte, e a marginalização das minorias étnicas, de onde parte o livro.

O talento de Tabucchi para pegar em cenários complexos e os dar quase de graça aos leitores, sem precisar de puxar o drama ou a tristeza, não é coisa pouca na produção literária. Aliás, só é possível com uma técnica depurada e o domínio de várias ferramentas de escrita. Tabucchi diverte, mas dá; brinca, mas mostra; verte a prosa, mas compõe um romance calibrado.