Fazer uma série dedicada a uma personagem obscura do vastíssimo plantel de heróis da Marvel tem tanto de arriscado como de inteligente. Por um lado há a possibilidade que o desconhecimento do grande público se traduza em desinteresse, mas o reverso da moeda é a tela em branco que essa mesma ignorância permita aos produtores um olhar fresco sem a bagagem de dezenas de outras versões da personagem para serem comparadas e avaliadas.

Moon Knight apareceu pela primeira vez nos comics em agosto de 1975 na edição #32 de “Werewolf by Night” e tem como criadores Doug Moench e Don Perlin. Após várias aparições em BDs de outras personagens, ganha o seu próprio espaço em 1980 com o lançamento do primeiro volume e respetiva origin story. Em 2012, a comunidade de leitores do site IGN elegeu Moon Knight como o 49.º melhor Avenger numa votação de Top 50 (o que me parece o equivalente a ganhar um prémio de fair play no inter-turmas). E em 2022 a Marvel Studios junta-o ao infinito MCU (Marvel Cinematic Universe) através da série de seis episódios que chega agora à Disney+.

Martin Scorsese que me perdoe (ele que famosamente disse que não considera estes filmes como cinema), mas quanto a mim o gigantesco mundo criado nestes mais de duas dezenas de filmes e quase tantas séries feitas e a caminho é um dos mais ambiciosos e revolucionários feitos narrativos de storytelling da história da dramaturgia nas suas várias vertentes. Centenas de personagens, arcos-narrativos, mundos paralelos e universos construídos meticulosamente para serem compreensíveis, divertidos de testemunhar e emocionalmente poderosos nos momentos certos. Com as séries televisivas exclusivas da Disney+, Kevin Feige (o arquiteto-mor de toda esta engenharia) e os seus colaboradores têm tido a liberdade de brincar ainda mais e inovar nos temas e tons que os filmes estabeleceram. Em “Wanda/Vision” exploraram o poder da dor da perda e luto, em Loki e What if…? assumiram ainda mais o fetichismo marveliano dos universos paralelos e em “Hawkeye” soltaram a diversão de dispara setas a bandidos. Agora com “Moon Knight”, abraçaram um tom mais dark e próximo do terror como nunca a Marvel se atreveu.

[o trailer de “Moon Knight”:]

O primeiro episódio da série é assumidamente confuso. Não no sentido de alguém que está a contar uma história sem saber bem para onde ela está a ir (todos temos um amigo assim), mas com o objetivo de que o espectador vá juntando as peças ao ritmo do seu igualmente perplexo protagonista.

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Oscar Isaac interpreta Steven Grant, um pacato vendedor de souvenirs de um museu londrino, que todos os dias adormece acorrentado à cama e com múltiplos cadeados na porta, não com medo do exterior, mas do que ele próprio poderá fazer quando o sono substitui o seu consciente pelo inconsciente. O que vamos descobrindo aos poucos é que Steven partilha o corpo com outrem e que essa divisão (que assumimos ser um mercenário ressuscitado pelos deuses egípcios que dá pelo nome de Marc Spector) será pouco pacífica.

Se a névoa narrativa deste episódio piloto não me causa (pelo menos ainda) preocupação para os capítulos seguintes, soam-me os alarmes a dinâmica da voz que discute com o alter-ego dentro do próprio corpo, por comparações óbvias e imediatas com a idêntica situação que vimos em “Venom” (e pior para quem foi enganado duas vezes e voltou para a sequela) e que é uma trapalhada sem pés nem cabeça. Ainda assim, do que vimos nestes primeiros quarenta e cinco minutos de história, Oscar Isaac está muito bem preparado para o papel duplicado de alguém que sofre de transtorno dissociativo de identidade, com uma interpretação certeira e uma realização competente que usa muitos espelhos e reflexos para servir visualmente estes “auto-diálogos” de duas personagens no mesmo corpo. A mesma realização também esconde inteligentemente as ações do alter-ego de Steven, revelando apenas o antes e depois das lutas que Marc/Moon Knight trava e o rasto de destruição que deixa. Nota positiva também para o sempre interessante Ethan Hawke no papel de um misterioso líder de culto ao serviço de uma divindade do antigo Egito e que tudo indica ser o principal vilão da história.

Como se tem tornado norma nesta era televisiva pós-“Lost”, o primeiro episódio de “Moon Knight” levanta muito mais questões do que aquelas que pretende responder, amarrando nós narrativos e colocando no ar várias bolas que terá que equilibrar ao longo dos próximos cinco capítulos para concluir satisfatoriamente. O histórico da Marvel faz-me crer que estamos em boas mãos, mas só no início de maio saberemos de facto se o nosso precioso tempo audiovisual foi bem investido.