Caso seja, como eu, alguém com um coração mole para êxitos pop que ficam na cabeça, deixe-me já atirar-lhe o balde de água fria: nunca ao longo desta série se vai ouvir o tema “Roar”, daquela altura breve e equivocada em que Katy Perry parecia o futuro do cançonetismo orelhudo à base de glitter e refrões cantados aos berros. “Roar”, que agora se estreia na Apple TV+, é a transposição para o pequeno ecrã de uma coletânea de contos distintos, mas com dois pontos em comum entre si: terem sempre uma mulher como protagonista; e fazerem uso do realismo mágico, corrente artística que mistura o banal com o fantástico, o pragmático com o onírico.
O livro Roar (editado em Portugal como Garra, pela Suma de Letras) é da autoria de Cecelia Ahern, uma irlandesa de 40 anos que é um fenómeno literário desde os 21. O seu primeiro romance, P.S. – Eu Amo-te foi um considerável sucesso, tendo resultado em 2007 num filme com Hilary Swank e Gerard Butler, daqueles que aparentemente estão sempre a dar no Canal Hollywood quando calha a passarmos lá no zapping. Liz Flahive and Carly Mensch, as criadoras de “GLOW” (uma interessante série da Netflix sobre um grupo de wrestling feminino nos anos 80, infelizmente cancelada precocemente) resolveram pegar em Roar para continuarem a sua missão de criarem mais séries protagonizadas por mulheres e que, de algum modo, coloquem um holofote nas suas experiências e preocupações.
[o trailer de “Roar”:]
O resultado é então uma série em modelo de antologia, no qual cada episódio é uma história separada, com os seus próprios personagens e trama. O lado do realismo mágico, com laivos de futurismo, de non sense e por vezes de sci-fi, torna “Roar” numa espécie de “Twilight Zone” do feminismo. Todas as narrativas, mesmo as que começam de modo mais pragmático e explícito, descambam invariavelmente para alguma fantasia, tornado cada episódio numa espécie de lenda da qual devemos ordenhar uma moral da história. E é aqui que começa aquela que é, talvez, uma das fragilidades de “Roar”: o quão pouco subtis são as suas metáforas, tornadas literais em todos os episódios.
Para isso, basta analisar os títulos de cada um dos capítulos. Títulos esses que, algumas vezes, constituem o chamado spoiler de um volte-face que seria mais interessante se surpreendesse o espectador. A saber, para cada um dos oito episódios: “A Mulher Que Desapareceu”, protagonizado por Issa Rae (“Insecure”); “A Mulher Que Comia Fotografias”, protagonizado por Nicole Kidman (uma das produtoras da série); “A Mulher Que Era Mantida Numa Prateleira”, protagonizado por Betty Gilpin (“GLOW”); “A Mulher Que Encontrou Marcas De Dentadas Na Sua Pele”, protagonizado por Cynthia Erivo (um fenómeno na Broadway quando protagonizou “A Minha Cor Púrpura”); “A Mulher Que Foi Alimentada Por Um Pato”, protagonizado por Merritt Wever (“Run”, “Nurse Jackie”); “A Mulher Que Resolveu O Seu Próprio Homicídio”, protagonizado por Alison Brie (“Mad Men”, “Community”); “A Mulher Que Devolveu O Seu Marido”, protagonizado por Meera Syal (“Goodness Gracious Me”); e “A Rapariga Que Adorava Cavalos”, protagonizado por Fivel Stewart (“Atypical”)
Praticamente todos os episódios usam uma certa dose de humor negro no seu conceito e nos seus diálogos, mas os diferentes tomos de “Roar” conseguem efetivamente ser distintos entre si. Desde o tipo de protagonistas — de diferentes idades, etnias e experiências de vida — ao próprio género cinematográfico dos episódios, que vão do western à fábula encantada com animais que falam. Apesar de existir uma coerência dos estilos de realização e até de escrita de guião, “Roar” padece de um mal geral das séries em antologia: há episódios muito melhores do que outros.
“A Mulher Que Era Mantida Numa Prateleira” mostra como Betty Gilpin é uma atriz que merece ser mais vezes protagonista, além de ser uma boa hipérbole da chamada “esposa troféu” e de ser uma espécie de “Boxing Helena” (um dos piores filmes de sempre) em bom. “A Mulher Que Encontrou Marcas De Dentadas Na Sua Pele” dirá sempre qualquer coisa a todas as mães que se sentem entaladas entre o profissional e o pessoal. “A Mulher Que Resolveu O Seu Próprio Homicídio” consegue um bom balanço entre comédia e grotesco e “A Mulher Que Devolveu O Seu Marido” é, provavelmente, o melhor episódio da série, sobre o que o tempo faz às relações (e é, curiosamente, o episódio com a protagonista mais velha, com 60 anos). Os restantes têm pontos fortes e fracos, mas serão mais esquecíveis. E alguns terão mesmo a sua dose de vergonha alheia, com uma cena de sexo entre uma mulher e um pato que infelizmente vai habitar na minha memória mesmo que eu a tente expulsar e mudar as fechaduras.
“Roar” é uma série com bons desempenhos (das protagonistas ao elenco secundário), com boas ideias e com uma estética interessante e, a espaços, fresca. Mas fica a ideia de que muitas vezes se limita a demonstrar em imagens o título do episódio, numa metáfora nem sempre subtil e quase sempre moralista qb. Talvez 30 minutos de duração por episódio não seja, por vezes, o suficiente para fazer mais do que o óbvio. Os temas são relevantes, da invisibilidade as mulheres negras à culpa materna, passando pelas relações amorosas tóxicas ao se uma mulher pode “agir como um homem”. E a experiência é, de grosso modo, prazerosa. Mas é mais fugaz do que aquilo que, calculo, as suas criadoras pretendiam.