Em 1953, o genial Totò entrou num filme chamado “O Turco Napolitano”, de Mario Mattoli, adaptado de uma peça de outro napolitano como ele. O ator e dramaturgo Eduardo Scarpetta (1853-1925), que criou e imortalizou, nos palcos de Nápoles e de toda a Itália, a personagem burlesca de Felice Sciosciammocca que, por sua vez, Totò interpreta naquela fita. Eduardo Scarpetta foi tão grande e tão popular como Totò, em cuja longa tradição cómica napolitana este se inscreve e continua. Mas a sua fama não se espalhou para fora de Itália porque, ao contrário de Totò, não fez cinema (arte que, aliás, desprezava, por achar que iria matar o teatro).

Scarpetta é também o pai de três nomes maiores do teatro e do cinema italiano, Eduardo, Peppino e Titina De Filippo, filhos ilegítimos de Luisa, sobrinha da sua mulher Rosa. Em “O Rei do Riso”, Mario Martone põe outro enorme ator italiano, Toni Servillo, a interpretar Eduardo Scarpetta, e recria a vida na grande e agitada “família” teatral do ator e dramaturgo, onde se misturavam mulher e amantes, filhos legítimos e ilegítimos, atores da sua companhia, parentes, amigos, e criadagem. E à primeira vista, o tema do filme é o processo por plágio que o aclamado vate nacional, Gabriele D’Annunzio, pôs a Scarpetta, após este ter feito uma paródia de uma peça sua (à qual o poeta havia dado antes o seu consentimento verbal).

[Veja o “trailer” de “O Rei do Riso”:]

Mas este é apenas o cabide onde Martone pendura a sua ampla, detalhada e afetuosa pintura da intimidade do clã Scarpetta e do trabalho da sua companhia teatral. A um primeiro ato passado no teatro de Nápoles onde o ator punha em cena as suas peças (e escreveu dezenas), modelos da mais genuína comédia napolitana, com personagens tiradas aos bairros populares e às ruas da cidade, segue-se o “teatro” da vida de Scarpetta e dos seus, desde as relações com a mulher, a amante e os filhos legítimos e ilegítimos (que conviviam uns com os outros), até às preocupações artísticas e profissionais. Que se emaranhavam umas nas outras, dada a contiguidade entre família e arte.

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O filme apanha Eduardo Scarpetta em fase descendente, com o aparecimento de uma nova geração de dramaturgos e autores que cortaram com o teatro cómico e dramático de raiz popular napolitana, considerado exausto e cultural e socialmente impróprio, e queriam fazer “arte teatral”, o advento do cinema (há uma cena em que Scarpetta se enfurece com o filho mais velho e legítimo, Vincenzo – interpretado por um descendente do ator e seu homónimo –, por este ir entrar num filme) e a dissidência de atores seus protegidos; e envolvido em tensões familiares (Luisa não quer que Eduardo, Peppino e Titina sigam as pegadas do pai no teatro, enquanto que Vincenzo pretende sair da sombra dele e fazer o seu caminho). A lenda está à beira de sair de cena.

[Veja uma entrevista com Mario Martone e Toni Servillo:]

Mas não o faz sem resolver o caso do plágio, tratado por Mario Martone no último ato de “O Rei do Riso”, e numa vintena de minutos, sem recorrer a qualquer cliché do “filme de tribunal”. Após Eduardo Scarpetta se ter ido aconselhar com o filósofo e historiador Benedetto Croce (Lino Musella, da série “Gomorra”), também ele napolitano, o ator traz o teatro para o julgamento, defendendo-se recorrendo ao humor e à ironia e assumindo a personagem de Felice Sciosciammocca, que após lhe ter dado fama e fortuna, lhe vale também uma inesperada e invulgar absolvição.

[Veja uma cena do filme:]

Toni Servillo mete-se como uma luva em Scarpetta, não caindo na armadilha de o interpretar carregando no histrionismo ou como um bufão cabotino, e não oculta os seus defeitos e falhas (ele morreu sem reconhecer os três filhos que fez a Luisa, e podia ser intolerante e tirânico, em casa e no teatro). E mostra ainda como a figura de Felice Sciosciammocca, saída do coração de Nápoles, decorria também da própria personalidade do orgulhoso e aplicado ator e autor, para quem o teatro era uma só realidade e não fazia o menor sentido dividi-lo entre “popular” e “artístico”. Título maior na filmografia de Mario Martone, “O Rei do Riso” é também um belo exemplo do cinema italiano no seu melhor e mais autêntico. E que sessão dupla faria com “O Turco Napolitano”: Totò, Scarpetta, Servillo, um trio de ouro, ouro de lei de Nápoles.