Anos antes de Salvador Ramos ter morrido em confrontos com a polícia, depois de disparar sobre a própria avó e ter tirado a vida a pelo menos 21 pessoas numa escola primária no Texas, Estados Unidos, Stephen Garcia já tinha perdido o melhor amigo.

Os dois sempre foram colegas de turma, mas a amizade entre eles tinha surgido no oitavo ano, quando eram pouco mais velhos que as 19 crianças que Salvador, natural de Dakota do Norte, matou esta terça-feira em Uvalve, estado norte-americano de Texas. O atirador era “o miúdo mais fixe, o miúdo mais tímido”, contou Stephen ao The Washington Post: “Só precisava de sair da concha. Era uma pessoa como todos nós”.

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Desde essa altura até ao início da escola secundária, os dois eram inseparáveis. “Jogávamos, ele ia buscar lanches à loja, bebíamos granizados e comíamos Takis“, recordou Stephen ao mesmo jornal: “Éramos miúdos normais, só dois miúdos preguiçosos”.

Salvador Ramos, uma constante vítima de bullying, chegou a ser alvo de comentários homofóbicos após ter publicado uma fotografia em que usava lápis preto nos olhos. A roupa que usava, percecionada como tipicamente feminina, era o principal foco dos agressores. O amigo defendia-o. Eram inseparáveis: a mãe de Stephen cozinhava para os dois, a avó de Salvador “era um amor” para ele e o avô chamava o amigo do neto para ganhar uns trocos a reparar máquinas de ar condicionado.

Tudo mudou quando Stephen Garcia foi com a mãe para outra cidade. Estavam ambos no início do secundário. Salvador começou a faltar à escola, deixou crescer o cabelo, começou a vestir-se de preto e a usar botas de estilo militar, descreve o amigo: “Como um assassino em série”, concluiu. “Começou a ser outra pessoa”, disse ele ao The Washington Post: “Foi piorando cada vez mais”. A certa altura, Salvador simplesmente deixou de aparecer nas aulas e começou a trabalhar num restaurante de fast food.

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Stephen diz ter-se esforçado para se manter em contacto com o amigo: acha que tinha feito dele “um rapaz normal” e que, sem a ligação entre ambos, Salvador podia voltar para dentro da concha. A última vez que os dois conversaram foi há um mês ou dois, mas a chamada foi breve, recordou Stephen ao The Washington Post: Salvador afirmou que estava à caça com o tio e que não tinha tempo para falar com o amigo.

Esta terça-feira, estava ele na aula de Álgebra, o telemóvel começou a receber uma avalancha de notificações — mensagens de outros amigos em Uvalve e notícias da imprensa local. O nome de Salvador Ramos saltou no ecrã e Stephen ficou sem palavras. “Acho que ele precisava de ajuda mental. E de resolver a relação com a família. E de amor“, admite o amigo. Mas nunca pensou que a falta de tudo isso culminasse no ataque desta terça-feira.

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A relação atribulada do “Careca” com a família

É que a relação de Salvador Ramos com a mãe não seria pacífica, testemunhou um vizinho da família, Ruben Flores, ao The Washington Post. Na Hood Street, rua em que moravam, chamavam-lhe “Pelón” — “careca” em castelhano, porque chegou a ter o cabelo muito curto. De vez em quando, Salvador ia dormir a casa de Ruben e da mulher, para passar tempo com o filho do casal; e era presença constante nos convívios da família Flores. Mas afastaram-se à medida que a relação de Salvador com a mãe se ia deteriorando.

Desde há quatro anos que Salvador e o filho de Ruben deixaram de ser amigos. Nos últimos meses, o jovem de 18 anos mudou-se para casa da avó — que era também a proprietária da vivenda onde o neto morava com a mãe e a irmã. Quando se cruzou com o vizinho na rua, a mulher revelou a Ruben que estava em processo de despejo da mãe de Salvador. Na terça-feira, a avó foi a primeira vítima do jovem.

Salvador deu pistas crípticas sobre o ataque nas redes sociais

A conversa entre Ruben e a avó de Salvador aconteceu no domingo. No dia anterior, o rapaz já teria publicado na sua conta do Instagram — entretanto eliminada na rede social, mas replicada por outros utilizadores — fotografias com duas espingardas automáticas AR15.

Tê-las-á comprado pouco depois de ter completado 18 anos, celebrados a 16 de maio — uma logo no dia seguinte, outra a 20 de maio, avançou o canal de televisão KPRC-TV, citando dados do Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos. Podem corresponder a pelo menos uma das duas armas com que Salvador perpetrou o ataque desta terça-feira na escola primária, admitiu o governador Greg Abbott.  No dia 18, adquiriu ainda 375 cartuchos de munição 5.56, uma família de balas regularmente utilizada pelas forças da NATO.

Esta quarta-feira, em declarações à ABC News, o avô de Salvador Ramos disse que a família desconhecia que o neto – que descreveu como um adolescente tranquilo que passava a maior parte do tempo sozinho no quarto – tinha comprado armas. “Desconhecia que ele tinha armas. Se soubesse, tinha-o denunciado”, garantiu Rolando Reyes. O avô de Salvador tem cadastro e, como tal, não podia ter armamento em casa.

Salvador também tinha uma conta no Tik Tok com apenas uma publicação: uma imagem de um jogo para smartphones, Subway Surfers, cujo objetivo é ajudar o protagonista numa corrida eterna e desviá-lo dos obstáculos que surgem no caminho. Salvador deixou uma descrição nesta publicação: “As crianças devem estar assustadas na vida real”.

Numa das fotografias colocadas no Instagram, Salvador identificou uma rapariga que só conheceria do mundo digital. Enquanto a conta permanecia ativa — também ela foi retirada, mas outras contas iguais estão a ser criadas —, a rapariga publicou a troca de mensagens que teve com o rapaz entre 12 de maio até poucas horas antes do ataque desta terça-feira. Nesse primeiro dia, Salvador enviou uma mensagem direta e privada com uma questão e isso iniciou uma conversa que antecipava o ataque.

— Vais republicar as minhas fotografias das armas?

— O quê? O que é que as tuas armas têm a ver comigo?

— Só te queria identificar [na foto].

— Mas porquê?

— Não sei. Sê grata por te ter identificado.

— Não, é só mesmo assustador.

— Como?

— Eu mal te conheço e tu identificas-me numa fotografia com umas armas.

— Ugh, parece que sim.

Na manhã do dia do ataque, nove horas antes de uma mera troca de cumprimentos entre os internautas, Salvador avisou a jovem, de forma misteriosa, do que estaria para acontecer. E o diálogo iniciado pelo atacante às 5h43, aparentemente sempre por escrito, foi a seguinte:

— Estou quase.

— O quê? Quase a quê? Bom dia.

— Digo-te antes das 11h. Bom dia.

— Bom dia. O quê?

— Mando-te mensagem daqui a uma hora.

— Okok.

— Mas TENS DE RESPONDER. Tenho um pequeno segredo. Quero contar-te.

— Posso estar a dormir uma sesta porque estou muito doente, mas se estiver acordada respondo.

— Jura.

— Juro mesmo.

Eram 9h16 de terça-feira quando Salvador voltou ao contacto: “Vou arejar”. Terá sido essa a última mensagem do jovem antes de, às 11h32, se ter dirigido à Escola Primária de Robb, onde matou pelo menos 19 crianças e dois adultos. Às 13h16 locais, quando a rapariga respondeu à mensagem — “O quê? Olá” —, já só recebeu silêncio.

Após ter publicado capturas de ecrã que mostram este diálogo, a jovem esclareceu que não conhecia Salvador: “É um estranho, não sei nada sobre ele. Decidiu identificar-me na publicação com armas. Lamento muito pelas vítimas e pelas suas famílias. Realmente não sei o que dizer”. Segundo ela, a jovem só decidiu responder às mensagens de Salvador porque tinha “medo”. “Quem me dera ter ficado acordada para pelo menos convencê-lo a não cometer o seu crime. Eu não sabia”, justificou.

Em resposta a um comentário às histórias no Instagram onde a rapariga publicou estas declarações, em que uma internauta apontou que ela estava a ser identificada como sendo namorada de Salvador, a jovem reiterou: “Eu não o conheço, nem sequer sou do Texas”. Não há indicações oficiais das autoridades norte-americanas de que esta pessoa teve algum envolvimento direto no ataque de terça-feira: Pete Arredondo, chefe da polícia do Distrito Escolar Independente Consolidado de Uvalde, avançou mesmo que Salvador “agiu sozinho durante este crime hediondo”.

Mas a conta está sob escrutínio nas redes sociais porque tem características que podem indiciar a prática de catfishing — a criação de identidades falsas para ludibriar terceiros, normalmente fazendo-se passar por alguém com interesses amorosos pela vítima. Desde logo, por causa do nome de utilizador, que se assemelha à frase “Send Nudes” (uma solicitação para enviar fotografias íntimas) e as publicações, todas elas de uma raparigas em poses sensuais, que se repetem noutras contas do Instagram.

A rapariga com quem Salvador trocou mensagens no Instagram não terá sido a única a receber sinais de um ataque iminente. Um antigo colega de escola com que o atacante costumava jogar XBox admitiu à CNN International, em condições de anonimato, que também recebeu fotografias de armamento do amigo.

“Ele mandava-me mensagens aqui e ali, e há quatro dias enviou-me uma foto da espingarda semi-automática que estava a usar e uma mochila cheia de munições 5.56“, confirmou o jovem. Quando questionou Salvador sobre o motivo para estar na posse deste material, o atacante respondeu: ” Não te preocupes com isso”. E acrescentou: “Estou muito diferente agora. Tu não me reconhecerias”, acrescentou.