A morte da Rainha Isabel II escancarou o debate: será que em pleno século XXI as monarquias ainda fazem sentido? E serão confortáveis poltronas de, mais ainda do que privilégio, impunidade? Quis a ironia que, no dia em que a rainha de Inglaterra morreu, a HBO Max lançasse uma série documental que deixou Espanha e a sua monarquia em alvoroço. Chama-se “Salvar O Rei”, tem três episódios e o interesse quase cinematográfico de mostrar que o Rei Emérito Juan Carlos está mais próximo de um vilão de James Bond do que de um monarca da Disney.
“Salvar O Rei” conta com mais de 50 depoimentos, que vão de jornalistas de variadas orientações editorais, a antigos agentes secretos, políticos, banqueiros e até familiares de amantes. Reconfirma muito do que já sabíamos sobre os esquemas e polémicas — que acabaram por resultar da sua abdicação, em nome do filho, aos 76 anos, deixando para trás um torno debilitado — mas também traz novas informações e revelações. Muitas delas dizem respeito à efervescente vida amorosa de Juan Carlos, mas explicando que estamos muito para lá de uma Holla lida no cabeleireiro enquanto se faz uma mise. É que o que se passava entre lençóis não ficava só entre lençóis, como exemplifica a chantagem levada a cabo pela atriz Bárbara Rey (que gravou seis anos de telefonemas e inconfidências) ou o poder de influência política dado à bela Corinna Larson. E sem esquecer a fotógrafa Queca Campillo, que eu não posso ser a única aqui com a imaturidade de pensar em mil piadas para este nome.
[o trailer de “Salvar o Rei”:]
Esta série documental da autoria do jornalista Santiago Acosta é, não neguemos, ideal para quem adora uma boa fofoca, mas não é por isso que deixa de expor algo que Juan Carlos II sempre ignorou propositadamente: que fazer tudo para proteger o Estado espanhol não deveria ser sinónimo de proteger tudo para proteger o Rei enquanto individuo. Porque o resultado foram quase quatro décadas de tolerância desbravada e ilimitada do abuso de poder para proveito pessoal. Tudo para, como o nome do documentário indica, salvar o rei, ao abrigo do artigo 56 da constituição espanhola: “La persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad”.
É preciso, claro, olhar para a frase dentro do contexto histórico no qual surge — e a série tem esse cuidado. Juan Carlos ultrapassou o seu pai pela direita foi coroado ao abrigo de uma Lei de Sucessão escrita por Franco, tendo começado como um franquista e progressivamente evoluído para um democrata. O artigo 56 salvaguardou esta jornada. Mas, simultaneamente, causou situações que puseram em causa não só o dinheiro público (um dos momentos do documentário é a menção de que Juan Carlos teria uma máquina de contar dinheiro), mas mesmo a segurança de Espanha. E, depois, o artigo garantiu que essas situações continuavam no silêncio.
Filmada num cenário imponente mas demasiado cenografado (é talvez, o ponto fraco deste documentário. O que é feito de uma boa parede cinzenta? Para que é que precisamos de fundos em teatros que nada têm a ver com o assunto, apetrechados com uma máquina de escrever mais velha que Juan Carlos?), a série preocupa-se em ser sobretudo informativa, escapando com elegância ao pé de chinelo que alguns detalhes poderiam exultar. Pena, mesmo assim, que não existam depoimentos da primeira pessoa de antigos presidentes do governo de Espanha, como José María Aznar ou Mariano Rajoy, que tiveram relações complicadas com o monarca e terão tentado impedir alguns dos seus comportamentos ilícitos.
Dando destaque a toda a vida de Juan Carlos, da infância no Estoril (existem muitas imagens do arquivo da RTP) até ao refúgio no Dubai, “Salvar O Rei” é uma série documental completa, sem ser exaustiva. É mais sólida do que lúdica, porque o que está em causa é sério e ainda tem tentáculos nos dias de hoje (a residência atual nos Emirados Árabes Unidos não será inocente). E aborda os elefantes na sala, desta vez sem estarem num safari polémico.