Anos 60. A crise dos mísseis de Cuba lança o receio: pode estar prestes a estalar o conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos da América. Um avião norte-americano foi abatido em terras de Fidel Castro. A embaixada suíça, do lado dos americanos, percebe que a guerra pode estar para breve, ao desencriptar uma mensagem que revela a implantação de armas nucleares naquele território. A ilha “está em quarentena”, como apelidaria John F Kennedy. A vida, o perigo, a rumba, os charutos, tudo fervilha no precipício de estar prestes a acabar. Annie está em Havana à procura de uma mulher modista, a melhor da capital cubana. “Francesa!”, exclama a modista para Annie, dando a entender que, apesar de ser estrangeira, o seu nome já baila pelas ruas de Havana com tamanho entusiasmo. “Sou portuguesa!”, responde. “Então porquê Annie?”, pergunta a cubana. “É uma longa história…”, responde a protagonista. Essa longa história de Annie, filha rebelde do último diretor da PIDE, Silva Pais, ganha finalmente vida em mais uma aposta da RTP1 na ficção histórica. Estreia-se esta quarta-feira às 21h00.
Annie apaixonou-se pela ideologia de Che Guevara, casou-se com um diplomata suíço, fugiu das saias dos pais em 1965 para se aliar à revolução cubana, tornou-se tradutora de Fidel Castro, relacionou-se com o seu médico. Queria ser mais “do que uma cara bonita”, deitando para o lixo tudo aquilo que o regime esperava dela que era, na altura, praticamente nada. Tudo isto enquanto António Oliveira Salazar e o seu Estado Novo pediam ao pai de Annie que aplicasse autoridade, moral e física, aos conspiradores do regime português. E no fim, que fosse um dos principais responsáveis pela “Operação Outono” (acusações retiradas porque Silva Pais morreu antes do julgamento), que ditou a morte de um dos grandes opositores de Salazar na altura, o general Humberto Delgado. Nesta série de seis episódios, além de conhecermos a “extraordinária história e personalidade” desta mulher que se queria emancipar e viver livremente, descobrimos detalhes de uma relação familiar complexa e viajamos por diferentes cenários — geográficos, políticos e sociais.
[o trailer de “Cuba Libre”:]
Quem o defende é o realizador e autor da série Henrique Oliveira, que há 20 anos desafiou Valdemar Cruz e José Pedro Castanheira, autores da peça “Filha Rebelde”, longa reportagem do Expresso sobre esta história que originou também um livro. “É um amor antigo. Quando folheei a revista do Expresso fiquei encantado com a história, desconhecia por completo. Liguei ao Valdemar e perguntei se seria possível adaptar. Ele concordou. Cheguei a escrever guiões, mas achei que não havia ainda condições. O projeto era muito ambicioso”, diz ao Observador. Foi preciso esperar pela altura certa. E por altura certa, leia-se, só chegou após a entrada das plataformas de streaming no panorama da ficção nacional, com os incentivos e apoios fiscais e a forte aposta da RTP em séries. E eis que estamos em 2022. “Fui-me metendo noutros projetos, mas, volta e meia, regressava à Annie e perguntava-me: o que seria bom para mim, enquanto autor, contar? A ideia foi muito maturada, não queria só filmar o lado revolucionário. Queria a sua história de vida, mostrar este triângulo familiar, a complexidade das suas relações. Quis deixar ao espectador a opção de decidir o que achar, nada em ‘Cuba Libre’ é a preto e branco”.
E não é, de facto. Há muita cor, dança e ritmo. Logo no primeiro episódio, temos um concurso de “Miss Piscina e Praia” no Grande Hotel do Luso na Figueira da Foz, onde Annie (interpretada por Beatriz Godinho, naquele que é o seu primeiro papel de protagonista de uma série) provoca os pais com um discurso corrosivo sobre o papel da mulher, onde só lhe falta arranjar marido, uma casa e “um rancho de filhos”. É ela que sai do carro do marido Raymond Quendoz (Peirre Kiwitt) em Havana para ir dançar com cubanos e cubanas no meio da rua. Porque um casamento não tem de ser uma prisão, nem o marido tem de ser o seu patrão. É ela que veste um vestido vermelho berrante, chamando a atenção de todos numa festa de uma embaixada em Havana, incluindo do próprio Che Guevara. É ela que nega “o entusiasmo da família” perante o novo cargo pidesco do pai, ao ser convidada para um jantar na embaixada da suíça. Fala espanhol, italiano e francês, lê Fredrico García Lorca ou Marguerite Duras. Viaja sozinha para Paris. Ouve Les Chats Sauvages ao mesmo tempo que vira a Nossa Senhora de costas. Pura subversão. Pura rebeldia. Pura ou exagero?
Calma. Sorri, é entusiasmante, desafia a autoridade da mãe, do pai, do marido, é ela que fica encarregue de carregar esta história, num esforço visual e escrito, muitas vezes demasiado teatral, para que se contrarie a ideia de que qualquer série de época tenha de ter um peso histórico tal que lhe retira qualquer energia ficcional. “Existe esse ritmo, esse tom, é uma obrigação agora para qualquer realizador ou produtor, abrir o caminho para que a ficção nacional se internacionalize. Quando editei o primeiro episódio, enviei-o a algumas produtoras estrangeiras. Responderam-me: isto é uma série portuguesa? É que não parece… disseram-no como elogio. Tinha uma energia fora do normal”, afirmou Henrique Oliveira.
Mas, segundo o autor, desengane-se quem acha que o tal exagero de alegria e provocação que brota da personalidade de Annie seja puramente para entreter as audiências. Até porque a história, que é pouco conhecida do público em geral, já contem demasiadas peripécias para ser necessário imprimir-lhe ficção. A prova de que Ana Maria Palhota da Silva Pais era uma roda viva de felicidade veio a ser confirmada por Henrique Oliveira através de uma amiga próxima de Annie em Havana. “Aqui há dois ou três meses viajei até Barcelona para a conhecer, era mulher de um embaixador na capital cubana. Uma mulher fascinante. Acompanhou toda a história e garantiu-me que a Annie era verdadeiramente assim. De um grande magnetismo, de um riso contagiante”, disse.
A fixação de Henrique Oliveira, tanto com a personagem como pela história, levou-o a pensar que seria possível rodar em Havana. Não foi. Demasiados problemas burocráticos com uma pandemia pelo meio que, “felizmente”, não atrasou nem um dia a produção de “Cuba Libre”. Virou-se a agulha para Cádis, depois de um colega guionista galego lhe dizer que a região espanhola seria perfeita para esta série de época. “Cheguei a fazer repérage em Havana e até a contactar uma produtora local, mas ficou difícil falar com as autoridades. Tudo demora muito em Cuba. O meu amigo disse-me para ir para Cádis, em Espanha. São ‘cidades irmãs’, descobri depois. E como a histórias e situava a partir de 62′, aquela região fazia lembrar Havana antes de ficar deteriorada. Era muito mais fiel à Havana Velha do que a Havana real”, disse. E assim foi, ou seja, quase todos os exteriores de Cuba foram lá filmados. O resto foi filmado em Portugal. Tudo em três meses de rodagem. Afinal, “o amor antigo” viu a luz do dia.