“No meio do caminho da nossa vida encontrei-me numa selva escura…” Assim começa a grande epopeia com que Dante Alighieri transforma o cristianismo em poesia, fechando as portas da Idade Média e abrindo-as ao Renascimento por vir. “No Meio do Caminho” é também uma peça de teatro do coletivo Griot que, depois de um percurso por um palco mais politicamente engajado, avança sem medo por uma obra clássica. Ao leme deste trabalho singular está o encenador Miguel Loureiro que, durante nove meses, trabalhou o texto de Dante para o transformar numa peça de teatro de um hora e vinte minutos. O resultado destes meses “de laboratório” é a entrada nas entrelinhas e nas brechas do texto de Alighieri e a sua transformação num diálogo onde o corpo é tão importante como as palavras. O resultado é uma peça onde a poesia se junta ao drama, ao canto e à dança, num trabalho de grande beleza plástica. Está em cena no Cineteatro Louletano, em Loulé.

“Quem sois vós?”, pergunta Dante à entrada do Purgatório. A pergunta, feita olhando o infinito, dirige-se aos muitos que ali jazem condenados, mas fica a ecoar, sai do palco, dirige-se ao público, a cada um de nós. Quem somos nós? Em que parte do caminho estamos? Afinal, o que é esta peregrinação entre o inferno, o purgatório e o paraíso senão uma metáfora portentosa da condição humana? Tão portentosa que redefiniu todo o imaginário cristão da “vida” depois da morte, ao ponto de se ter criado a expressão “um inferno dantesco”? A força deste poema, que Vasco Graça Moura escreveu ter uma forte “componente cinematográfica”, vem-lhe de uma carga imagética tão rica como a linguística onde se junta o etéreo ao quotidiano, a ponto de chegar quase a ser panfletário, diz ainda VGM.

Dante, que teve uma vida atribulada, de muitas experiências feita, conheceu artistas, cortesãos e plebeus, nobres, papas e toda essa realidade e todo o seu vasto conhecimento em áreas que iam da musica à matemática, ele vai integrar no poema criando assim ” uma tensão entre o microcosmos individual e o macrocomos, o confronto do individuo concreto com o universo”, considera ainda Graça Moura.

Com apenas três atores (Daniel Martinho, Tiago Barbosa e Zia Soares) que se desmultiplicam em vários papeis, Miguel Loureiro foi lapidando o texto, procurando dentro dele as histórias que podia transpor para cena, ousou mesmo trazer Santo Agostinho para criar a sua própria versão do Paraíso, algo que Dante certamente não desdenharia, pois era também ele um leitor deste filósofo.

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A meio do caminho da sua vida, Dante, um homem da Toscana do século XIV, que cresceu e cresceu entre as sangrentas lutas travadas, durante décadas, por Gibelinos e Guelfos, que passou vinte anos no exílio, transpõe para este livro não só a suma do cristianismo, mas também aquilo que é estruturante da condição humana: a guerra, o amor, o medo da morte, a expiação da culpa, o medo do castigo, tudo numa atmosfera de chiaroscuro, que viria a ser típica do renascimento e que nesta obra ele antecipa.

Embora a peça de Miguel Loureiro e dos Griot seja uma versão muito reduzida da Comédia, a verdade é que ele, em conjunto com Miguel Graça e Miguel Pereira (que assina a coreografia), conseguiram criar uma atmosfera de fantasmagoria, que vai do mais puro medo à serenidade final. Entre o trágico e o caricatural há toda a gama de emoções e experiências humanas, quer coletivas quer individuais e que apesar de ter apenas três atores quando “precisava de 200”, o encenador usa a falta como um recurso para resgatar o talento e a agilidade dos seus artistas.

Apesar de ser também uma “epopeia do conhecimento Humano”, o enredo é simples: no mês de Abril do ano 1300, o poeta Dante tem a experiência de entrar no inferno e fazer todo um percurso até ao paraíso e à visão divina, durante sete dias. Nessa viagem é guiado por Virgílio, poeta maior do império Romano, pelo qual Dante sentia nostalgia, sendo, ao mesmo tempo, contra o poder papal (por isso muitos papas e religiosos são colocados no inferno ou no purgatório e nunca no paraíso). No paraíso reencontra Beatriz, jovem que ele amou na adolescência, mas que casou com um nobre e morreu apenas com 24 anos. Este caminho faz-se em espirais onde cada lugar é uma espécie de cone invertido e o seu momento maior e mais impactante é sem dúvida o inferno. Como escreveu Graça Moura, no prefácio da sua tradução desta obra, “na Comédia aparecem todas as esferas imagináveis do real: passado e presente, grandeza e abjeção, história e fábula, trágico e cómico, homem e paisagem, para uma alegoria da vida humana”.

Apesar de todo o trabalho por detrás desta criação, ela só tem previstas quatro récitas: duas em Loulé (a segunda esta sexta-feira) e outras duas no Centro Cultural da Malaposta, em Odivelas (a 22 e 23 de Outubro). Em conversa com o Observador, o encenador Miguel Loureiro mostrou-se um tanto desolado com o estado do teatro em Portugal, especialmente quando se trata de pequenas companhias que não têm sala própria e ficam à mercê de serem incluídas na programação das grandes salas. “Em Portugal criou-se esta situação perversa de os teatros serem geridos por convite político e os seus diretores artísticos preferem mostrar muitas peças diferentes em vez de deixarem uma boa peça ficar um ou dois meses em cena. Não se percebe. Qualquer peça precisa de tempo para amadurecer e para chegar a um público mais vasto. Trabalhamos nove meses numa peça para ela se apresentar quatro vezes, não faz sentido. Depois disso, teremos que ficar à espera da sorte de sermos convidados por outra sala…”