Em maio de 1897, foi publicado em Inglaterra o romance Drácula. O livro foi bem recebido, com a grande maioria dos críticos a compará-lo com obras anteriores e a destacarem a forma singular como Bram Stoker tratou o mito do vampiro. Porém, seriam necessários vários anos até que Drácula tivesse o reconhecimento merecido — quando foi publicado, foi superado em número de vendas por outro romance do género gótico, The Beetle, de Richard Marsh. A história de um deputado britânico amaldiçoado por uma múmia egípcia acabou por cair no esquecimento, mas a obra-prima de Stoker sobreviveu à passagem do tempo, tornando-se uma das histórias mais populares de sempre, sendo alvo de inúmeras adaptações que se tornaram tão ou mais famosas que o livro.
Uma das primeiras adaptações para o cinema foi feita há 100 anos, numa altura em que a viúva de Stoker, Florence Stoker, ainda estava viva. Quando soube que “Nosferatu”, de F. W. Murnau, estava a ser produzido na Alemanha, Florence avançou com uma mediática ação legal contra o estúdio Prana, exigindo que todas as cópias fossem destruídas (o que, felizmente, acabou por não acontecer). Mas talvez a mais conhecida adaptação cinematográfica de Drácula seja a que foi realizada há 30 anos por Francis Ford Coppola: “Drácula de Bram Stoker”. O filme foi um sucesso imediato: na semana de estreia, em novembro de 1992, chegou ao primeiro lugar das vendas de bilheteira nos Estados Unidos da América, com uma receita superior a 30 milhões de dólares, o valor mais alto até então atingido por um filme sobre vampiros.
Estas três efemérides — os 125 anos de Drácula, os 100 de “Nosferatu” e os 30 de “Drácula de Bram Stoker” — serviram de mote a um encontro organizado esta segunda-feira na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, pelo Centre for English, Translation, and Anglo-Portuguese Studies da Universidade Nova de Lisboa e o Centro de Estudos Ingleses da Universidade de Lisboa sobre as “adaptações e atualizações artísticas deste antigo mito europeu” — o vampiro. Entre a literatura e o cinema, as quatro comunicações apresentadas na BNP mostraram como, ao longo dos séculos, o mito do morto que se ergue da campa para sugar o sangue dos vivos foi sendo renovado para servir os propósitos de diferentes autores e épocas. A conclusão a que se chegou no final da sessão não foi surpreendente: o vampiro, quer seja na versão de Stoker ou noutra, continua bem vivo e a caminhar entre nós.
[Trailer comemorativo dos 100 anos de “Nosferatu”:]
Dos vampiros vitorianos aos vampiros dos tempos modernos: a sobrevivência de um mito
Apesar de Drácula ser o vampiro mais famoso, está longe de ter sido o primeiro a surgir. Rogério Miguel Puga, da Universidade Nova de Lisboa, abriu a sessão desta segunda-feira na BNP com uma comunicação sobre o pouco conhecido fragmento de Lord Byron que deu origem à novela The Vampyre, de John William Polidori, considerada um textos fundadores da literatura inglesa sobre vampiros. The Vampyre foi publicado a 1 de abril de 1819 na revista britânica New Monthly Magazine, 78 anos antes de Stoker criar Drácula, e na altura atribuído a Byron. O erro indignou o poeta, que publicou posteriormente o seu fragmento para desmentir a falsa autoria e para provar que foi o seu texto que serviu de inspiração a Polidori, que o plagiou de forma descarada e que criou a sua personagem vampírica baseando-se no próprio Byron, seu antigo paciente. “Estes dois textos, juntamente com outras referências, são a origem do mito do vampiro na literatura inglesa”, afirmou o investigador.
A história do “Fragmento” de Byron começa com o desafio de composição de uma história de fantasmas lançado por Byron numa noite chuvosa de verão aos seus companheiros na Villa Diodati, junto ao Lago Lemano, na Suíça: o amigo Percy Shelley; a mulher deste, Mary Shelley; a meia-irmã de Mary, Claire Clairmont; e o seu médico, Polidori, posteriormente dispensado. De todas as obras produzidas na Villa Diodati, o fragmento é das menos estudadas, apontou Rogério Miguel Puga, acrescentando que o texto é “ainda alvo de polémica sobre a sua dimensão vampírica”, um aspeto em relação ao qual o investigador e professor não tem qualquer dúvida.
O “Fragmento” descreve a viagem de um jovem ao oriente na companhia de um homem mais rico e alguns anos mais velho, Augustus Darvell. Durante o percurso, Darvell começa a enfraquecer, até que acaba por morrer ao chegar a um cemitério muçulmano. Apesar de a narrativa não ter sido concluída, tudo leva a crer que terminaria com o renascimento de Darvell, apontou Puga. Ao longo do texto é possível identificar várias referências gregas, especificamente aos mistérios de Elêusis, o que levou o investigador a defender que a figura do vampiro tem “uma origem mítico-religiosa” de cariz “orientalista”, uma vez que, no “Fragmento”, Lord Byron misturou duas “tradições místicas”, a grega, dos mistérios de Elêusis, e a do vampiro, originária do leste da Europa.
[Trailer oficial de “Drácula de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola:]
Jéssica Bispo, também da Universidade Nova de Lisboa, interpretou as experiências das vítimas dos vampiros de Christabel de Samuel Taylor Coleridge, Carmilla de Sheridan Le Fanu, e Drácula de Bram Stoker, à luz do misticismo, sugerindo que a sedução e a mordedura do vampiro levam as suas vítimas a passar por uma experiência mística transgressora, que lhes desperta desejos proibidos e leva ao questionamento do meio que os rodeiam, as expectativas culturais e normas repressivas. Ana Daniela Coelho e José Duarte, do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, falaram sobre o vampirismo enquanto doença, que no romance de Stoker parece referir-se à cólera, através da referência ao nevoeiro (acreditava-se que as doenças eram transmitidas por “vapores insalubres” e por “contacto direto).
No caso de “Nosferatu”, que estreou no momento em que “o mundo saía da maior pandemia registada desde a Idade Média”, a Gripe Espanhola, que varreu a Europa entre 1918 e 1920, a referência à doença aparece logo no início do filme, quando se explica que, em 1838, a peste atingiu a cidade de Wisborg, coincidindo com a chegada do Conde Orlok. “Drácula de Bram Stoker” surgiu igualmente numa altura em que uma doença, neste caso a Sida, fazia manchete nos jornais.
Estes filmes foram referidos também por Cátia Marques, que recuperou várias interpretações da figura do vampiro para defender que “os vampiros caminham entre nós, cativando a humanidade com a ideia de imortalidade e fazendo-nos pensar por vezes que, para sempre, é de mais”.