Depois do desastroso “remake” de “Suspiria”, ambientado numa Berlim ainda dividida pelo muro e entre um grupo de bruxas com fações internas ao jeito de um partido político, o italiano Luca Guadagnino permanece no território do terror em “Ossos e Tudo”, adaptado de um livro da escritora Camille DeAngelis. Mas de uma forma desastrada e irritantemente “autorista”, como se tivesse vergonha de fazer um filme puro e duro do género e quisesse de alguma forma “elevá-lo” e dar-lhe uma respeitabilidade que ele obviamente não necessita. Nas mãos de um realizador especializado, “Ossos e Tudo” seria uma honesta e linear série B de “splatter horror”, resolvida em hora e meia. Nas de Guadagnino, é tudo menos isso.

[Veja o “trailer” de “Ossos e Tudo”:]

“Ossos e Tudo” passa-se nos anos 80, no interior dos EUA. Após um chocante episódio com uma colega do liceu, a jovem Maren (Taylor Russell) é abandonada pelo pai, que lhe deixa algum dinheiro, uma cassete áudio para ouvir e o seu certificado de nascimento. Maren mete-se então à estrada, à procura da mãe que nunca conheceu, e vai ouvindo a cassete pelo caminho, que a elucida, e aos espectadores, sobre o que está mal com ela. Acontece que Maren é uma Comedora, uma pessoa com instintos canibais aos quais é impossível resistir, sobretudo quando o apetite por carne humana se torna muito forte (os Comedores podem também ingerir comida normal, como flocos, panquecas e hambúrgueres – não sabemos se mal ou bem passados).

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[Veja uma entrevista com o realizador e os atores:]

Depois de conhecer o sinistro Sully (Mark Rylance), também ele um Comedor, que lhe dá informações sobre a condição de ambos, e de partilhar com ele uma presa (uma idosa que teve um AVC na casa onde vivia sozinha e onde aquele se introduziu), Maren acaba por fugir, com medo que Sully lhe faça mal. Encontra então o jovem Lee (Timothée Chalamet), também ele um Comedor, mas que tem família e que, tal como ela, continua muito ligado à sua parte humana e se sente angustiado pela sua condição e incomodado pela sua consciência (ele procura sempre vítimas antipáticas e solitárias, como o labrego que confronta no supermercado onde Maren o conhece).

[Veja uma cena do filme:]

Este é um filme híbrido e indeciso, parte “road movie”, parte história de jovens marginais e trágicos, parte narrativa de terror pretensiosa. Guadagnino e o argumentista David Kajganich não se preocupam em explicar, ou pormenorizar um pouco que seja, a origem e a natureza dos Comedores (maldição? aberração evolutiva? perversão genética?), nem Maren e Lee parecem interessados em saber mais sobre porque são assim, ou quais as limitações e as vantagens dos seus hábitos alimentares, que não parecem estar associados a um qualquer poder sobrenatural. E “Ossos e Tudo” também não quer explorar a noção do monstro (de aspeto humano ou não) como pária social ou sexual, como fizeram outros filmes de terror (por exemplo, “Raças da Noite”, de Clive Barker).

A fita tem tempo a mais para o pouco que conta, o subenredo da busca pela mãe de Maren é supérfluo e leva a uma tão breve como lamentável participação de Chloë Sevigny no papel daquela (e a uma aparição-relâmpago de Jessica Harper na avó), as sequências de canibalismo e de violência são “gory” mas desconchavadas, e a química entre o casal de protagonistas é escassa. Taylor Russell sai-se aceitavelmente como Maren, mas Chalamet é, mais uma vez, afetado e superficial, e muito pouco persuasivo no papel do errante e intranquilo Lee. Se não fosse o elemento canibal, “Ossos e Tudo” seria apenas mais um filme rotineiro sobre jovens “on the road” e socialmente alienados. Luca Guadagnino mordeu mais do que consegue mastigar.