Associamos o diagnóstico de uma doença ao momento em que o médico, sentado à nossa frente, diz ‘”tem um tumor”, “não tem um tumor”, “tem uma artéria bloqueada”, “tem um coração saudável”, “tem uma pneumonia”, “não tem nada nos pulmões”.

Uma extraordinária quantidade destas palavras – que ora fazem o coração bater mais depressa, ora nos permitem respirar de alívio – têm origem em dados de exames de imagem: raio-X, Tomografia Axial Computorizada (TAC), ecografia, angiografia, Ressonância Magnética (RM). O médico diz-nos o que temos ou não temos com base no que foi possível captar com uma máquina criada por engenheiros, programadores, físicos e matemáticos. Isso significa que, antes de se tornar um assunto clínico, o diagnóstico médico é uma questão tecnológica. Em última análise, a pergunta é: o que é que o equipamento de diagnóstico em questão consegue “ver”?

É a essa questão que a investigadora Teresa Correia, de 40 anos, do Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMAR), se tem dedicado nos últimos 15 anos: a desenvolver formas que permitam às máquinas ver mais e melhor. Tem usado a sua formação em física, matemática, engenharia e programação para melhorar as técnicas de aquisição, reconstrução e correção de movimento em imagem médica, nomeadamente na Ressonância Magnética (RM) aplicada a doenças cardiovasculares. Com o seu novo projecto, financiado pela Fundação “la Caixa”, pretende melhorar o diagnóstico da cardiopatia coronária (CC) – a principal causa de morte a nível mundial – que ocorre quando o fluxo de sangue para o coração fica limitado.

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“A doenças das artérias coronárias resulta da acumulação de placas de gordura nas artérias que irrigam o coração. Isso dificulta a passagem do sangue, fazendo com que o músculo cardíaco, o miocárdio, receba menos nutrientes e oxigénio”, explica a investigadora.

No caso de ocorrer um bloqueio total das artérias, pode ocorrer um enfarte do miocárdio — ou, como geralmente lhe chamamos, um ataque cardíaco — pelo que é importante haver um diagnóstico e tratamento precoce da doença que evite complicações graves ou fatais.”

Atualmente o método usado para detetar a doença é a angiografia coronária, mas o exame apresenta algumas limitações. “É caro, invasivo, usa radiação raio-X e só deteta os bloqueios das artérias, não é visível a doença numa fase mais inicial, que pode ocorrer ao nível dos vasos sanguíneos mais pequenos, as ramificações destas artérias coronárias”, explica a investigadora.

A alternativa mais completa é a Ressonância Magnética Cardíaca, uma técnica usada – e recomendada – para observar a função cardíaca, a viabilidade dos tecidos e também a forma como o sangue percorre o coração, através do agente de contraste administrado. “Mas esta passagem acontece em menos de um minuto, o que quer dizer que temos de obter muita informação em pouco tempo. Isso significa que temos de sacrificar alguma coisa. Presentemente, sacrificamos a qualidade de imagem, que é relativamente baixa para os padrões da RM e também não conseguimos obter uma imagem completa do coração, mas apenas de secções.”

Aos desafios técnicos, junta-se um problema para o paciente que Teresa Correia conhece bem: é necessário suster a respiração várias vezes, para a imagem não sair “tremida”. “Já estive várias vezes dentro de uma máquina de RM, como cobaia, para testar os meus próprios métodos, e sei que é difícil estar em apneia. E sou uma pessoa saudável, para alguém doente será mais complicado. Acabamos por ter muitas vezes imagens que estão deterioradas pelo movimento respiratório e podem deixar de ser úteis.”

A apneia que é exigida ao paciente e a imagem incompleta e de pouco detalhe são dificuldades técnicas pertinentes. Mas, hoje, o maior problema são as dificuldades de recursos humanos. “É uma técnica complexa e a interpretação dos dados requer pessoal altamente qualificado, com muito tempo de formação. É por isso que o exame só é feito em centros especializados, há muitos sítios que teriam a capacidade técnica para o fazer, mas não tem recursos humanos.”

São muitos problemas e Teresa Correia vai tentar resolvê-los a todos: propõe-se a mudar a forma como os dados são adquiridos pela máquina e o modo como são apresentados. “Por isso temos uma colaboração com a Philips Healthcare [uma das principais empresas de desenvolvimento de equipamentos de RM] que nos permite ter acesso ao software da máquina de RM e fazer alterações”, explica a investigadora. “Vamos combinar técnicas de aquisição de dados, com modelos matemáticos do fluxo cardíaco sanguíneo, reconstrução de imagem e também correção do movimento.”

O objetivo é conseguir uma imagem de todo o coração, e não só de secções, com maior qualidade e sem que o paciente tenha de suspender a respiração. “Se tudo correr bem, vamos conseguir que a máquina obtenha mais e melhor informação, diminuir o desconforto para o paciente”, refere Teresa Correia.

Mas a investigadora pretende também facilitar o trabalho de quem realiza o exame, “seja porque a máquina faz muito do trabalho automaticamente, exigindo menos formação, seja porque gerar mapas quantitativos que tornam os resultados mais fácil de interpretar”.

Além da colaboração da Philips Healthcare, o projeto vai funcionar em consórcio com outras três instituições. Em Espanha, contam com um grupo de investigação do Centro Nacional de Investigação Cardiovascular Carlos III, em Madrid, para os testes clínicos, e outro da Universidade de Valladolid, que vai trazer experiência no desenvolvimento de técnicas de correção de movimento. Em Portugal, tem a colaboração da Associação do Instituto Superior Técnico para a Investigação e Desenvolvimento para trabalhar na aquisição de dados.

Natural de Olhão, Teresa Correia partiu para Lisboa aos 17 anos para fazer o curso superior no Instituto Superior Técnico. A inclinação para as ciências era óbvia há algum tempo e chegou a pensar em seguir Engenharia Aeroespacial. O universo fascinava-a — ainda fascina — e imaginava-se a trabalhar na Agência Espacial Europeia (ESA), mas, depois, leu uma notícia num jornal sobre dois ex-alunos do Instituto Superior Técnico (IST) que estavam a fazer investigação na Califórnia. O artigo dizia que tinham feito a licenciatura em Engenharia Física e Tecnológica. Nunca em tal tinha ouvido falar, mas soou-lhe bem e pareceu-lhe mais abrangente. Concorreu e entrou.

Vencia com alegria as cinco horas de autocarro entre Olhão e Lisboa. “Estava farta de um meio pequeno e queria ir para uma cidade grande.” E Lisboa era grande, mas não o suficiente. Por isso, no fim do curso, partiu para Copenhaga, onde esteve cerca de um ano e meio. Fez Erasmus no Instituto Niels Bohr, da Universidade de Copenhaga e esteve também no Risø, o laboratório nacional dinamarquês, onde teve o primeiro contacto com a investigação na área da biomédica. “No entanto, no fim, Copenhaga também já me parecia uma cidade muito pequena.” Foi então para Londres, para fazer o doutoramento em Física Médica e Engenharia Biomédica, na University College London, onde trabalhou alguns anos a olhar para o desenvolvimento do cérebro infantil através de tomografia óptica. Mais tarde, mudou-se para o King’s College London, onde esteve até há dois anos, a investigar técnicas de ressonância magnética aplicadas a problemas cardíacos.

Até que começou a repensar as suas prioridades. “E depois de 15 anos a viver numa cidade muito grande, percebi que queria viver numa cidade pequena”, confessa a rir. Tinha vontade de voltar ao Algarve e o desejo de criar um centro na área das tecnologias digitais, da bioimagem e de ressonância magnética que contribuíssem para o desenvolvimento da região. Começou a pensar na importância de descentralizar e questionar algumas ideias preconcebidas: “Porque é que este trabalho tem de ser feito numa cidade grande e não pode ser feito numa cidade pequena?”

“Antes de vir para o Algarve pensei: de que preciso para fazer isto resultar? E a resposta era: um computador. Posso fazer muita investigação só com um computador e, o resto, remotamente através de colaborações e viajando quando for necessário.” É precisamente o que está a fazer. O Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMAR) acolheu-a. Usa a sua experiência na área da imagiologia ótica para aplicar esta técnica ao estudo da biologia marinha e, paralelamente, lançou-se no seu sonho de criar perto da sua terra natal um centro de referência na área de imagem médica, através do financiamento da Fundação “la Caixa”.

“Uma das coisas que me fez mais feliz nos últimos tempos? Ver a publicação de resultados do concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde 2022 assinalados num mapa. Dos 13 projectos em Portugal a maioria dos pontinhos estão em Lisboa, no Porto, em Coimbra. Mas também há um no Algarve.” O sonho de pôr a região no mapa-mundo do diagnóstico através de bioimagem já começou.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto DIRect QuanTitative Assessment of  Heart Disease with Magnetic Resonance Imaging, liderado por Teresa Matias Correia, do CCMAR, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. A investigadora recebeu um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 15 de novembro. Os prazos da edição de 2023 deverão ser conhecidos no primeiro semestre do próximo ano.