Ao longo das últimas três décadas, poucos álbuns têm sido alvo de constantes redescobertas como E2-E4 de Manuel Göttsching. Vários fatores têm ajudado, desde as pistas de dança, referências de inúmeros músicos e constantes reedições que proporcionam descobertas ou novos olhares sobre uma obra gravada num só take, com o intuito de gravar música para ouvir no avião numa viagem entre Berlim e Hamburgo. O músico morreu no passado dia 4 de dezembro, mas só ontem, dia 12, foi tornado público. Tinha 70 anos.

Nascido em 1952, Göttsching tornou-se uma referência no rock alemão graças aos Ash Ra Tempel, banda formada no início da década de 1970, com Klaus Schulze e Harmut Enke. Um trio de formação clássica de rock, mas que foi sofrendo alterações ao longo da sua curta existência. Algumas delas notórias, como Dieter Dierks ou Harald Grosskopf, outro nome essencial para perceber como a música cósmica alemã (“kosmische”) chegou às pistas de dança nas últimas duas décadas, graças a álbuns como Synthesist (1980) ou Oceanheart (1986). Em 1973 chegaram a editar um álbum com Timothy Leary, “Seven Up”. Apesar de estarem inseridos no imaginário krautrock, desde o início, no álbum homónimo de 1971 (onde trabalharam com o Conny Plank, notável engenheiro de som), que se demarcaram um pouco do resto pela abordagem que faziam ao blues e rock progressivo, criando sempre a partir de um regime livre e sem restrições.

Jeito comum a muitas bandas alemãs na época, mas o que ainda hoje permanece na música dos Ash Ra Tempel é a persistência da ideia de continuidade para o infinito, de criação que não tinha bem onde acabar. Por isso, não há ansiedade de narrativa, é música sem expectativa, que se entrega ao momento. Isso é muito evidente em material que foi relevado décadas mais tarde — as The Private Tapes — onde se percebe como funcionavam nas sessões de gravações e de como os músicos se articulavam nas suas sessões de improvisação.

Ainda nessa década esteve envolvido com os Cosmic Jokers (onde estava também Schulze, Dierks e Grosskopf), propagação natural do gospel dos Ash Ra Tempel, mas numa vertente mais psicadélica e eletrónica. É nesta fase, em 1975, que Manuel Göttsching lança Inventions For Electric Guitar, disco de guitarra que sedimenta bases para o universo “kosmische”. Ainda hoje é celebrado como um importante disco rock desta fase, nele acontecem muitas coisas, ou melhor, estados que passariam para E2-E4. Em 1976 edita New Age Of Earth, já totalmente entregue à ideia de música ambiente/cósmica.

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E2-E4 é referência a uma famosa jogada de xadrez (a jogada de abertura mais comum). A capa do álbum replica um tabuleiro de xadrez e ao longo das décadas tem ganho um estatuto icónico. Contudo, a música não é uma jogada de xadrez. Manuel Göttsching nunca poderia adivinhar o sucesso que aquela sua gravação teria nos anos seguintes e, sobretudo, nas décadas seguintes. Em parte, porque é um resultado de uma sessão privada que, por acaso, ficou gravada. Como muitas outras que tinha feito na década anterior, com os, e enquanto, Ash Ra Tempel (alguns dos seus discos a solo fora editado com esse nome). São 59 minutos, num só take, onde o músico alemão usa sintetizadores, guitarra e sequenciadores.

Por mais vezes que se oiça E2-E4, o efeito de qualquer coisa a abrir-se é frequente e notável. Ouvido sem qualquer referência, torna-se numa peça difícil de situar. O equipamento usado não situa a música necessariamente no momento, o que torna a experiência ainda mais aberta e dada a interpretações. Na altura, Manuel Göttsching teve dificuldades em editar E2-E4, passou alguns anos a tentar até o álbum ser finalmente editado em 1984, na Inteam GmbH, em vinil: só alguns anos mais tarde sairia em CD da mesma forma como foi gravado, numa peça contínua.

Naquela sessão, Göttsching queria fazer algo à semelhança das abordagens minimalistas de Steve Reich e Terry Riley. Por isso, é natural que tenha ficado surpreendido quando soube que a sua peça andava a ser tocada no Paradise Garage, a famosa discoteca nova-iorquina. Corria a história de diversos DJs, entre os quais DJ Harvey, que tocavam os 59 minutos da peça nos seus sets, fazendo inclusive uma pausa para trocar de lado do vinil.

Após os 2000, E2-E4 ganhou outro impulso. Não só graças a um renovado interesse na música alemã daquele período, sobretudo a eletrónica/ambient/cósmica, como a animosidade com que diversos músicos promoveram a obra, como James Murphy, que disse que quando foi convidado para gravar 45:33 para a Nike, ficou entusiasmadíssimo porque seria a sua oportunidade para fazer algo como E2-E4. A homenagem não se ficou por aí, a capa da versão digital dessa peça, prestava homenagem à escolhida por Göttsching. Na DFA, editora de James Murphy, a influência do músico alemã também se começava a sentir, como é o exemplo do magnífico The Days Of Mars, de Delia Gonzalez & Gavin Russom, um daqueles discos algo esquecidos daquele período que vale a pena descobrir.

Quase quatro décadas após o seu lançamento, E2-E4 ainda regista surpresa. É uma daquelas obras que abre cabeças quando é ouvida pela primeira vez e que, após sucessivas audições, ainda suscita alegria quando se começa a ouvir a guitarra de Göttsching: faz todo o sentido, mas é tão inesperado, suave, que tem qualquer coisa de divino. Göttsching quebrou barreiras entre a música contemporânea/electrónica e o techno, a house e o transe sem intenção. Em parte, porque o fez antes de tempo, alheado de qualquer manual de instruções. Por isso, E2-E4 é intemporal a sério, um clássico para todos os tempos, uma epopeia mecânica e grandiosa de abstração.