A homilia do Papa Francisco na cerimónia fúnebre do Papa emérito Bento XVI centrou-se na frase de Cristo “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, citada no Evangelho de Lucas, para refletir sobre a entrega de Bento XVI ao longo da vida.

Leia aqui o texto na íntegra:

“‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’: são as últimas palavras que o Senhor pronunciou na cruz; quase poderíamos dizer, o seu último suspiro, capaz de confirmar aquilo que caraterizou toda a sua vida: uma entrega contínua nas mãos de seu Pai. Mãos de perdão e compaixão, de cura e misericórdia, mãos de unção e bênção, que O impeliram a entregar-Se também nas mãos dos seus irmãos. Aberto às pendências que ia encontrando ao longo do caminho, o Senhor deixou-Se cinzelar pela vontade do Pai, carregando aos ombros todas as consequências e dificuldades do Evangelho até ao ponto de ver as suas mãos chagadas por amor. ‘Olha as minhas mãos’: disse Ele a Tomé, e o mesmo diz a cada um de nós. Mãos chagadas que se nos estendem numa oferta incessante a fim de conhecermos o amor que Deus tem por nós e acreditarmos nele.

‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’ é o convite e o programa de vida que inspira pretende modelar, como um oleiro, o coração do pastor até que palpitem nele os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: dedicação agradecida, dedicação orante e dedicação sustenta pela consolação do Espírito.

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Dedicação agradecida, feita de serviço ao Senhor e ao seu Povo que nasce da certeza de se ter recebido um dom totalmente gratuito. «Pertences a eles; pertences-Me a Mim»: sussurra o Senhor. ‘Tu estás sob a proteção das minhas mãos, sob a proteção do meu coração. (…) Permanece no espaço das minhas mãos e dá-Me as tuas’. Trata-se da condescendência de Deus e da sua proximidade, capaz de Se colocar nas mãos frágeis dos seus discípulos para poderem alimentar o seu povo, dizendo com Ele: tomai e comei; tomai e bebei! Isto é o meu corpo oferecido por vós.

Dedicação orante, que se plasma e aperfeiçoa silenciosamente por entre as encruzilhadas e contradições, que o pastor deve enfrentar, e o esperançado convite a apascentar o rebanho. Como o Mestre, carrega sobre os ombros a canseira da intercessão e o desgaste da unção pelo seu povo, especialmente onde a bondade é contrastada e os irmãos veem ameaçada a sua dignidade. Neste encontro de intercessão, o Senhor vai gerando a mansidão capaz de compreender, acolher, esperar e apostar para além das incompreensões que isso possa suscitar. Fecundidade invisível e incontrolável, que nasce de saber em que mãos temos posta a nossa confiança. Confiança orante e adoradora, capaz de moldar as ações do pastor e adaptar o seu coração e as suas decisões aos tempos de Deus: ‘Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença’.

Dedicação sustentada pela consolação do Espírito, que sempre o precede na missão e transparece na paixão de comunicar a beleza e a alegria do Evangelho, no testemunho fecundo daqueles que, como Maria, permanecem de muitos modos ao pé da cruz, naquela paz dolorosa mas robusta que não agride nem escraviza; e na esperança obstinada mas paciente de que o Senhor há de cumprir a promessa feita aos nossos pais e à sua descendência para sempre.

Também nós, firmemente unidos às últimas palavras do Senhor e ao testemunho que marcou a sua vida, queremos, como comunidade eclesial, seguir as suas pegadas e confiar o nosso irmão às mãos do Pai: que estas mãos misericordiosas encontrem a sua lâmpada acesa com o azeite do Evangelho, que ele difundiu e testemunhou durante a sua vida.

No final da Regra Pastoral, São Gregório Magno convidava e exortava um amigo a prestar lhe esta companhia espiritual: ‘No meio das tempestades da minha vida, conforta-me a confiança de que tu manter-me-ás à superfície sobre a tábua das tuas orações e, se o peso das minhas culpas me abater e humilhar, emprestar-me-ás a ajuda dos teus méritos para me elevar’. É a consciência do pastor que não pode carregar sozinho aquilo que, na realidade, nunca poderia sustentar sozinho e, por isso, sabe abandonar-se à oração e ao cuidado do povo que lhe está confiado. É o Povo fiel de Deus que, congregado, acompanha e confia a vida de quem foi seu pastor. Como as mulheres do Evangelho no sepulcro, estamos aqui com o perfume da gratidão e o unguento da esperança para lhe provar, uma vez mais, o amor que não se perde; queremos fazê-lo com a mesma unção, sabedoria, delicadeza e dedicação que ele soube dispensar ao longo dos anos. Queremos dizer juntos: ‘Pai, nas tuas mãos entregamos o seu espírito’.

Bento, fiel amigo do Esposo, que a tua alegria seja perfeita escutando definitivamente e para sempre a sua voz!”