Às primeiras horas daquela segunda-feira, 20 de junho de 1983, um agente de patrulha deparou-se com uma coluna de fumo a sair de um carro estacionado num beco junto a uma avenida em Inglewood, na cidade californiana de Los Angeles.

Era um Cadillac branco, matrícula MS RW 1, e estava a arder. Depois de os bombeiros terem controlado o fogo, o agente começou a investigar: só os bancos do carro tinham sido consumidos pelo fogo. Mas na bagageira, poupada pelas chamas, estava o cadáver de Roberta Wydermyer, com um tiro na cabeça disparado a mais de 60 centímetros de distância e uma bala de calibre .38 debaixo do corpo.

Durante 38 anos, um homem chamado Maurice Hastings, com 29 anos no dia do crime, foi acusado de ter assaltado, violado e matado Roberta Wydermyer. Só um dado o ligava ao caso: o cartão telefónico da vítima, que estava perdido desde o dia do seu desaparecimento, tinha sido encontrado na posse de Maurice e começou a ser utilizado por ele apenas dois dias depois do crime.

Não havia provas de que Maurice Hastings conhecia Roberta Wydermyer. Não havia indicações de que os dois tinham estado sequer no mesmo espaço naquele dia — pelo contrário, o homem apresentou evidências de que estava numa festa na noite do crime, um álibi confirmado por quem tinha estado com ele.

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Ainda assim, em 1988, graças a uma série de declarações erradas prestadas em tribunal pelas testemunhas do crime, uma sequência de informações enganadoras e algumas coincidências, uma rebuscada tese da acusação contra Maurice convenceu o júri. O homem acabou condenado à prisão perpétua — uma pena que era, ainda assim, mais leve que a desejada pela Procuradoria-Geral, que queria pretendia condenar o suspeito à pena de morte.

Foram precisas quatro décadas para que fosse feita justiça. Maurice Hastings foi declarado inocente esta segunda-feira pelo juiz William C. Ryan, do Tribunal Superior de Los Angeles, graças a uma amostra de ADN que ninguém quis testar entre os anos 80 e 90. “Significa muito. Estou grato pela decisão do juiz e pelos pedidos de desculpa. Tudo foi maravilhoso hoje”, considerou o homem, agora com 69 anos de vida, mais de metade da qual passada preso por um crime que não cometeu.

Em busca de Roberta: “Onde está a mulher que conduz este carro?”

Quando o agente de patrulha encontrou o corpo de Roberta, Billy Wydermyer procurava pela mulher há 24 horas, conta o Registo Nacional de Exonerações, da Universidade de Califórnia. Roberta tinha saído de casa depois da meia-noite de domingo para comprar um desocongestionante nasal, cigarros para o marido; e para se encontrar, às escondidas, com um antigo amigo de liceu, James Paxton. Os dois nunca se chegaram a cruzar. Às 6h30, quando Billy acordou atordoado na sala, depois de ter adormecido no sofá à espera da mulher, não a encontrou. Ele ainda não o sabia, mas Roberta Wydermyer já estava morta.

Billy ainda vasculhava a casa, na East 5th Avenue em Los Angeles, quando recebeu uma chamada. Um homem em Inglewood, a cerca de 13 quilómetros dali, avisou que tinha encontrado a carteira de Roberta no passeio junto ao seu jardim. Billy foi ao encontro do homem e apercebeu-se que faltavam 500 dólares em notas e o cartão que Roberta utilizava para fazer chamadas através dos telefónicos públicos.

O marido avisou então a polícia de que Roberta não tinha voltado a casa naquela noite, mas as autoridades instruíram-no a preencher uma queixa formal 48 horas após o desaparecimento. Billy não quis esperar tanto tempo: chamou George Pinson, filho de uma inquilina do casal Wydermyer, e os dois foram em busca de Roberta pelas ruas da vizinhança. Pouco depois, viram o Cadillac branco da mulher numa estrada em Crenshaw.

Billy e George, a bordo de um Chevrolet Malibu, seguiram o carro. Quando o alcançaram, pararam ao seu lado. Dentro do Cadillac branco estava um homem negro com um boné de beisebol com as letras “L.A.P.D.” — uma sigla que significa “Los Angeles Police Department” ou, em português, “Departamento da Polícia de Los Angeles”. “Onde está a mulher que conduz este carro?”, perguntou Billy ao condutor, julgando que era um agente da polícia. Quando o homem sorriu, Billy percebeu que estava enganado: “Ele olhou para mim, sorriu, virou a cabeça e disse: ‘Está entre a 106th e a Normandie’“.

Começou então uma perseguição nas estradas de Los Angeles. Billy e George seguiram o Cadillac branco, que tinha arrancado a toda a velocidade depois do diálogo com o viúvo de Roberta. A certa altura, o condutor parou abruptamente e disparou três vezes contra o Chevrolet Malibu. Uma bala atingiu os bancos traseiros do carro, outra ficou alojada no tablier. A terceira bala atingiu Billy na têmpora esquerda.

George acelerou em direção ao hospital. Billy teve de ser operado para retirar fragmentos do pára-brisas do Chevrolet Malibu dos olhos; e para remover fragmentos da bala que o tinha atingido na cabeça. Um deles não pode ser retirado: ficou alojado no tronco cerebral, a parte do cérebro que controla funções vitais como o ritmo cardíaco ou a respiração. Os médicos decidiram mantê-la por receio que Billy sofresse danos cerebrais irreversíveis durante a operação. Lá fora, um homicida continuava à solta.

A conta de telefone que incriminou um homem inocente

Eram já duas da manhã de segunda-feira, 45 minutos depois de o carro de Roberta ter sido encontrado na bagageira pela polícia, quando alguém telefona para a casa da família Wydermyer. “Onde está o Billy?”, questionou um homem do outro lado: “E porque é que ele me seguiu? Cometeu um grande erro”. No dia seguinte, na terça-feira dia 21 de junho de 1983, um novo telefonema — e, do outro lado, a mesma voz: “Ele está vivo?”.

O primeiro telefonema causou estranheza aos agentes que tinham sido destacados para investigar a morte de Roberta e o ataque de Billy. É que nenhum dos amigos o chamava assim: a sua alcunha era “Touché”. Por isso, quando o suspeito voltou a telefonar para a casa dos Wydermyer no dia seguinte, a polícia já estava a postos para rastrear a chamada. E percebeu que ela tinha partido de Montclair Liquors, uma loja de conveniência em Long Beach, Califórnia.

A qualidade desta informação revelou-se menor do que se esperava porque as chamadas tinham partido de um telefone público. Mas a polícia julgou que tinha alcançado um grande avanço na investigação quando, já a 18 de julho de 1983, chegou a conta do cartão telefónico de Roberta. O documento revelava que o cartão tinha sido utilizado para fazer 20 chamadas entre os dias 21 e 29 de junho — quase todas para números de telefones públicos em Pittsburgh e para estações de autocarro em Los Angeles, Novo México, Phoenix e Oklahoma. Nenhuma para a casa dos Wydermyer.

Ainda assim, a polícia acreditava que o autor daquelas chamadas deveria ser a mesma pessoa que telefonou por duas vezes para Billy Wydermyer a propósito da perseguição. E as coincidências bastaram: Maurice Hastings chegou a utilizar o telefone público da Montclair Liquors para efetivamente realizar algumas das chamadas que vinham descritas na conta do cartão de Roberta. Precisamente o mesmo telefone público de onde tinha partido uma das chamadas feitas para a casa dos Wydermyer.

As misteriosas chamadas (e os estranhos avistamentos) de Maurice

Maurice Hastings acabou por ser detido a 2 de outubro de 1984 em casa da mãe em Los Angeles, acusado de homicídio, roubo e tentativa de homicídio. Sempre disse ser inocente. No primeiro julgamento, e após oito dias de deliberação, o júri não chegou a qualquer consenso e ele foi declarado nulo. O segundo julgamento aconteceu já em abril de 1988 — e foi nessa segunda ocasião que Maurice Hastings acabou condenado, apesar de a acusação não ter apresentado quaisquer provas físicas ou forenses que o ligassem à morte de Roberta e ao ataque a Billy e a George.

O problema foi que tanto Billy Wydermyer como George Pinson identificaram Maurice como o homem que viram a bordo do Cadillac branco. Outra mulher, Yolanda Spears, disse ter visto o carro estacionado junto ao local de trabalho do namorado a 19 de junho de 1983; e de se ter apercebido que um homem estava no interior. Questionado sobre se conseguiria identificar esse indivíduo, Yolanda apontou o dedo a Maurice. Outra testemunha, Linda Toler, afirmou ter visto Maurice a correr dos fundos de um prédio nas proximidades do local do crime no dia da morte de Roberta.

Todos disseram que o homem com quem se tinham cruzado tinha um dente de ouro ou, pelo menos, exibia um objeto brilhante na boca. Não era o caso de Maurice, que ainda apresentou fotografias que o colocariam numa festa na noite em que Roberta foi morta. Mas as imagens não estavam identificadas com uma data e algumas testemunhas afirmaram que a celebração tinha acontecido em 1984 — não em 1983 —, contrariando as declarações de outras pessoas que estavam no mesmo evento.

Também outra mulher, Jo Ann Austin, disse ter-se cruzado com Maurice numa paragem de autocarros quando ela estava prestes a dirigir-se para Portland, Oregon, para visitar a mãe; e ele estava a caminho de Pittsburgh  — “a fugir” de Los Angeles, segundo a acusação. Por lá, dizia ainda quem queria condenar Maurice, o suspeito teria penhorado um pingente com nove diamantes por 225 dólares (o equivalente a cerca de 211 euros) cuja descrição correspondia ao de um colar que Roberta usava na noite do crime.

E depois há, claro, o facto de Maurice Hastings estar na posse do cartão telefónico de Roberta e de o ter utilizado tão brevemente depois da morte da mulher. A irmã do suspeito, Carleen Hastings, disse ter recebido o cartão pela mão de um homem chamado Donald Sanford e de o ter entregue a Maurice. Jo Ann Austin deu outra versão: Maurice ter-lhe-á dito em agosto de 1983 que tinha recebido o cartão de um amigo e que ele pertencia a uma mulher que tinha sido “eliminada”.

A prova de ADN que provou a inocência de Maurice, décadas depois

Desta vez, o júri condenou Maurice Hastings. Mas ele não desistiu porque havia uma prova que jogava a seu favor e que nunca tinha sido explorada em tribunal: uma amostra de ADN que tinha sido recolhido no local do crime. É que, durante a autópsia a Roberta, foi utilizado um “kit de violação”, a partir do qual se recolhem amostras de sangue ou sémen para determinar se uma pessoa foi sexualmente violentada.

Em 2000, Maurice enviou uma carta ao gabinete do procurador distrital do condado de Los Angeles avisando que estava preso havia mais de 15 anos por um crime que não cometeu: “A evidência mais convincente que ainda não foi examinada é a evidência de ADN, que mostrará conclusivamente que eu não era a pessoa envolvida com a vítima no momento do crime”.

O apelo de Maurice caiu em saco roto quando o procurador afirmou que as autoridades já não tinham as amostras da ADN recolhidas durante a autópsia. Vinte e dois anos mais tarde, em outubro de 2022, a recém-criada Unidade para a Intengridade na Condenação comparou as amostras retiradas do cadáver de Roberta com o ADN de Maurice Hastings.

Foi nesse momento, já com a ajuda do Los Angeles Innocence Project, que se descobriu aquilo que Maurice defendia desde os anos 80: as amostras não coincidiam. Afinal, o ADN encontrado no corpo da vítima pertencia a um homem que, quando morreu, em 2020, estava a cumprir uma pena de 56 anos por crimes sexuais.

Maurice estava finalmente livre. E era inocente. Em declarações aos jornalistas admitiu que rezou ao longo de décadas para que este dia chegasse: “Agradeço ao Ministério Público, aos meus advogados e à minha família por me apoiarem. Estou ansioso para seguir em frente. Não aponto dedos. Não estou aqui como um homem amargo, só quero aproveitar a minha vida agora, enquanto a tenho“.