Pouca coisa poderia surpreender Pau Gasol na noite de quarta-feira. O reconhecimento estava garantido, a emoção era inevitável. No entanto, havia algo que ninguém esperava no momento em que a camisola 16 dos Los Angeles Lakers fosse retirada para o panteão dos melhores entre os melhores na Crypto.com Arena, ao lado do 24 do amigo e “irmão” Kobe Bryant. Algo que veio da mulher do falecido jogador, Vanessa. Algo que deixou o antigo poste internacional espanhol, que passara o aniversário de 2020 na companhia das filhas do ex-companheiro de equipa, em lágrimas: uma mensagem agora a título póstumo da estrela da NBA.
“Dear Basketball”. A curta de animação que valeu um Óscar polémico a Kobe
“Não há debate possível, quando ele se retirar vai ver o seu número ser também retirado e ficar ao lado do meu. Não teria ganho aqueles campeonatos se não fosse o Pau, os Lakers não teriam aqueles campeonatos se não fosse o Pau. Ele sabe disso, toda a gente sabe disso e estou ansioso com o dia em que ele fizer o discurso no centro do pavilhão para os fãs que sempre o apoiaram. Vai ser uma noite fantástica”, dizia Kobe que, sabe-se agora, estava a ser filmado pelo jornalista Antonio Martín. Contexto? A cerimónia dos Óscares. Isso mesmo, “os” Óscares. O antigo base era muito mais do que um jogador e até o texto de despedida da NBA com o nome “Dear Basketball”, publicado no The Players’ Tribune em 2016, se transformou na vitória da estatueta para a melhor curta metragem animada em 2018 num trabalho com o animador Glen Keane.
???? Vídeo | El periodista Antonio Martín fue quien grabó a Kobe Bryant vaticinando que se retiraría la camiseta de Pau Gasol en los Lakers. Ese vídeo se acabó reproduciendo en la ceremonia que le inmortalizaría en el pabellón de Los Ángeles. Su historia ???? https://t.co/m1RLclm9DH pic.twitter.com/LLM68Mtthb
— EL PAÍS (@el_pais) March 10, 2023
O Dolby Theatre numa Califórnia que se rendeu às proezas de Kobe durante duas décadas servia de palco ao jogador para mais um título que só os predestinados conseguiriam alcançar. E essa foi a última imagem mais imediata da ligação entre cinema e desporto na noite em que os melhores filmes do ano são premiados. Pelo menos, até aqui. E há uma história na calha para ser um dos pontos altos dos Óscares de 2023 que envolve uma antiga campeã mundial de triatlo agora candidata a receber a estatueta do Melhor Argumento Adaptado (como aconteceu nos Bafta). Uma história que, por si própria, é o guião para uma longa metragem.
“A oeste nada de novo”, filme alemão da Netflix, foi o grande vencedor dos prémios BAFTA
A atriz principal é Lesley Paterson, uma escocesa de 42 anos de Stirling mais conhecida como “The Scottish Rocket” pelos feitos no triatlo. Antes, fez de tudo um pouco para nunca estar parada e ter sempre algo para fazer: ao mesmo tempo que tinha aulas de dança, a mais nova de quatro irmãos começou a jogar râguebi com apenas sete anos no Stirling County Rugby Club onde passaram a militar 250 rapazes… e uma rapariga. “Eles ou queriam derrubar-me com mais força ou tinham medo de aproximar-se”, resumiu à BBC sobre esse período onde ascendeu a capitã de equipa e se tornou campeã com apenas dez anos. “Se alguém me diz que é difícil e que não devo fazer algo, faço logo. Gosto de desafios, de dor, de sofrimento”, contou à Marca. No entanto, o limite de idade para jogar com rapazes acabara. Fechou-se a porta, abriu-se a janela de oportunidade. “A” oportunidade, por influência do pai. E foi assim que o triatlo entrou na sua vida.
Mais uma vez, Lesley Paterson tinha uma vida dividida entre dois argumentos. Por um lado, prosseguia os seus estudos, neste caso uma licenciatura em inglês e arte dramática em Loughborough e um master em teatro já na Universidade de San Diego. Por outro, deixava crescer de uma forma que nem a própria poderia prever a paixão por uma modalidade onde só não ia mais longe até a uma qualificação olímpica porque não era tão boa como gostava no setor da natação. Entre ambas, tomou uma decisão que 16 anos depois valeu a pena: comprou os direitos para cinema do livro “A Oeste nada de novo” com o sócio e escritor Ian Stokell, uma obra de Erich Maria Remarque que a fascinou e que tinha chegado a filme mas ainda nos anos 30. “O que mais me cativou foi o poder do tema da traição. É uma história alemã mas que transcende qualquer país. Nunca costumamos ver os filmes da perspetiva de quem perde e temos uma visão distinta do impacto da guerra”, explicou a propósito da história passada durante o período da Primeira Guerra Mundial.
Nessa altura, também a carreira no triatlo estava em suspenso, subindo ao palco principal alguns trabalhos como atriz sobretudo no teatro. A partir daí, o desporto voltou para que pagasse o sonho do cinema. “A minha experiência no triatlo de ter sempre de superar as adversidades, enfrentar todos os meus medos e nunca poder render-me ajudou a manter sempre de pé este filme ao longo de 16 anos”, resumiu.
“The uniform is worth more than the man. That says everything about the film.” In a conversation with the LA Times, BAFTA Winner Lesley Paterson and Ian Stokell explain the thought process behind adapting All Quiet on the Western Front. pic.twitter.com/99lFKOgTj0
— All Quiet On The Western Front (@allquietmovie) March 5, 2023
“Passava 15 a 20 horas por semana na piscina e mesmo assim não ia a lado nenhum… Era sempre a última a sair da água e isso acabou por destruiu-me. Por isso, comecei a desistir. Aliás, a certa altura comecei mesmo a odiar porque a ansiedade estava a tomar conta de mim e as corridas estavam a tornar-se uma experiência angustiante”, explicou. No entanto, deu uma nova oportunidade a essa paixão em 2007 durante umas férias na Escócia (já vivia em San Diego com o marido). Ganhou. Mais tarde, tomou pela primeira vez contacto com o XTERRA, uma série de triatlos de cross com natação, ciclismo de montanha e corrida de montanha. A ex-vice-campeã mundial júnior do duatlo descobrira uma paixão dentro da paixão. Começou a ganhar, sagrou-se campeã mundial, teve de parar devido à doença de Lyme, voltou para ser de novo vencedora. Ao todo, entre 2011 e 2019, ganhou cinco ouros e outros tantas pratas entre os Mundiais de XTERRA e Mundiais de triatlo de cross. Às vezes, no limite das forças. Uma vez, para além das suas forças. E tudo pelo cinema.
A prova ganha em 2015 é o melhor exemplo disso mesmo. Para renovar todos os anos os direitos do livro favorito, Lesley Paterson teria de reunir um valor entre os 10.000 e os 15.000 dólares. Na Costa Rica, num XTERRA com 1,5 quilómetros de natação, 30 quilómetros de ciclismo de montanha e mais 11 de corrida de montanha, apostava tudo. Problema? Na véspera caiu da bicicleta no treino e partiu o ombro. “Falei com o meu marido Simon e ele respondeu-me ‘Se fazes tão bem o exercício com um braço na água, porque não tentas nadar só com um braço?’. Tentei, consegui ganhar e paguei esse ano”, contou à CNN. Ao todo, e entre possíveis produções e atores que foi perdendo por falta de verbas, fez questão de manter esses direitos para o cinema da obra, gastando cerca de 200.000 dólares até se tornar realidade 16 anos depois.
Meet Lesley Paterson, the former triathlete and ballerina whose debut screenplay earned her a Bafta award and nine Oscar nominations: https://t.co/4rchZ9KbCy
— Financial Times (@FinancialTimes) March 5, 2023
Como escreveu o Financial Times, qualquer pessoa que faça um filme biográfico sobre a história da vida de Lesley Paterson enfrenta uma “bênção confusa”. Porquê? Pelos ângulos que pode levar, “dos 16 anos que levou até que conseguisse realizar o filme, as dificuldades financeiras que sentiu para não perder a hipótese, os prémios monetários de eventos desportivos para manter vivo o sonho, os seis meses de cama e os ossos fraturados em momentos críticos”. A partir deste domingo, qualquer desses caminhos pode acabar no óscar mas, ganhando, quer apenas comer muito chocolate. O projeto seguinte, além de um thriler de ação, já está pensado: a história de Lopez Lomong, uma criança do Sudão que fugiu de um campo de prisioneiros com dez anos, destacou-se nas provas de meio fundo e chegou aos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 pelos EUA.