O título assusta e a história supreende, mas justifica-o. Jennette McCurdy é hoje conhecida pelo público juvenil por ter sido uma das estrelas da série “iCarly”, da Nickelodeon. Fez também parte da sequela “Sam & Cat” e da série “Between”. O caminho para lá chegar foi, lê-se agora, uma história de pressão constante e repressão.

Em 2017, McCurdy deixou a carreira de actriz, dedicando-se à escrita e à realização. Neste livro, temos um relato na primeira pessoa da sua jornada, sempre decidida pela mãe, que queria à força toda que a filha tivesse uma carreira na televisão. McCurdy tinha seis anos quando fez a sua primeira audição. O sonho era da mãe – e o sonho da filha era deixar a mãe feliz. Com isto, sujeitou-se a restrições alimentares pesadas. A mãe fazia-lhe uma dieta de mil calorias por dia, ela cortava-as ao meio para acelerar os resultados, pesando-se cinco ou seis vezes por dia. A ideia de comer pouco implicava ser o mais pequena possível, o que, no entender da mãe, lhe daria vantagem nas audições: conseguiria passar por mais nova, tendo mais capacidade de fazer.

Em casa, toda a sua estética era controlada, desde a pele à cor das pestanas ou ao cabelo. Aos 16 anos, ainda era a mãe a dar-lhe banho. Já mais do que crescida, ao ponto de a envergonhar, a mãe ainda ia com ela à casa-de-banho para a limpar. A repressão existia ainda de forma sexual, sendo a mãe mórmon, e isto apesar de os beijos em televisão serem permitidos. A descrição do primeiro beijo em televisão também sabe a violência: não tendo a filha real interesse em representar, sentia que os pontos-chave da vida lhe eram roubados ali (no caso, o primeiro beijo). Aqui, a ideia do fanatismo religioso também ganha peso. Já em adulta, e já com algum sucesso, a mãe vê fotografias da filha na Internet com um homem. Os insultos que daí advêm são arrepiantes:

Estou tão desiludida contigo. Costumavas ser o meu anjinho perfeito, mas agora não passas de uma PEGA, uma FLAUSINA, TODA GASTA. E pensar que desperdiçaste isso tudo por esse OGRE horrendo. (…) lista de coisas que tu és: MENTIROSA, INTRIGUISTA, MÁ. Também estás mais balofa. É óbvio que estás a COMER, TANTA É A CULPA.

Imaginar-te com o badalo dele dentro de ti faz-me vomitar. VOMITAR. (…) Contei a história aos teus irmãos e eles disseram todos que te vão renegar, tal como eu. Não queremos ter mais nada que ver contigo.

Com amor,
Mãe (ou devo dizer DEB, visto que já não sou a tua mãe)

P.S. – Envia dinheiro para um frigorífico novo. O nosso estragou-se.”

A jornada de McCurdy é um embate constante com a ausência de amor-próprio. Os distúrbios alimentares, impulsionados desde a infância, encontram par nas relações pouco saudáveis, até tóxicas, que estabelece. A morte da mãe, inicialmente, ao invés de uma libertação, acaba por criar mais problemas: que faz com a vida alguém que fez de si apenas o que outra pessoa quis, que foi para onde foi dirigida, que escolheu sempre satisfazer a vontade alheia?

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O relato impressiona, precisamente porque McCurdy não perde tempo com grandes contemplações. Ao invés disso, relata mesmo, deixando o leitor em cena com as personagens. Claro que, ao leitor, cabe, então, acreditar no que lê, mas o jogo é esse e a leitura não é um tribunal. Ouve-se, durante as 300 e tal páginas, uma versão que é uma angústia, uma pressão que sabe a prisão permanente. E, partindo-se dos momentos de pressão, percebe-se ainda o impacto de se instrumentalizar alguém para o cumprimento de um sonho próprio. Afinal, a autora relata que a mãe quisera ser actriz, não tendo tido apoio ou possibilidade para isso, e tentando concretizar esse caminho através da filha.


Título: “Ainda bem que a minha mãe morreu”
Autora: Jennette McCurdy
Editora: Lua de papel

Tradução: Mariana Vieira
Páginas: 352

Em vez de uma mãe que lhe indique um caminho saudável para a vida, parece que temos um algoz. Deb inflige pequenas dores constantes, sempre em nome da beleza, que se apresenta como uma ditadura, fim absoluto, objectivo único. No fim, temos um livro em que se mostra a deturpação da relação filial: a devoção da filha é extrema, no que se revela uma espécie de síndrome de Estocolmo. E, da parte da mãe, a filha parece existir como mero instrumento para subir uma escada social. Uma vez lá chegada, prova o seu valor. Tendo o caminho solavancos, a autora vai mostrando o seu valor como coisa nada intrínseca, antes como dependente do olhar alheio ou da sua capacidade de continuar magra ou pequena.

Findo o relato, o leitor tem em frente a si uma história de abusos, que arrepiam mais por virem do lugar de protecção. Ao mesmo tempo, entende-se que, por parte da perpetradora dos abusos, parece haver uma condição patológica, para além de mera má-vontade. Prova disso para ser a incongruência do email anteriormente citado, em que há uma súbita mudança de assunto: primeiro, o ódio, a incapacidade de perdão (perdão de quê?), os insultos, a frieza, a crueldade; por outro, a normalidade com que pede um favor. Nada sabe a desculpa, porque, tudo pesado, temos uma criança massacrada a vida inteira, uma auto-estima destruída, uma agora adulta que, após a morte da mãe, não sabe bem para onde ir. Essa morte, por via do cancro, até já era antes instrumentalizada para chantagem emocional ou para culpabilização: nos momentos em que McCurdy se desviava do caminho que lhe era não indicado mas imposto, a mãe culpava-a do regresso do cancro. Nas relações amorosas que, de início, McCurdy estabelece, também se vê o seu hábito em ser desconsiderada, anulando-se para proporcionar o cumprimento da vontade alheia.

É um retrato pungente, não necessariamente apenas para quem conhecia já o trabalho de McCurdy na televisão. Para o ler e perceber, não é preciso sequer saber o que é “iCarly”. Essa parte da realidade é quase acessória, uma vez que o que o livro dá é o acesso à intimidade de alguém oprimido a vida toda para dar uma imagem bela, clara e limpa na televisão. E, com isto, fica visível o que é a vida além da encenação.

A autora escreve com a antiga ortografia.