“Tu e a tua irmã são completamente loucos.” Esta mensagem parece clara e determinante para o que vai acontecer nas vidas dos irmãos Felice e Claire. Os dois atores são abandonados pela companhia, num teatro decrépito, numa cidade de província. Para sobreviverem, começam a representar a história de dois irmãos órfãos que testemunharam o homicídio da mãe e o suicídio do pai, mas não se atrevem a abandonar a casa, os fantasmas, os traumas ficando para sempre condenados a reviver a sua própria história, ora como verdade, ora como fição. Mas será que aquela carta é verdade ou foi inventada por Felice para manter Claire prisioneira naquele teatro que é também a sua casa? Quando é que Felice e Claire param de representar? Será que aquilo que mostram ao público é tudo verdade ou é tudo mentira. É realidade ou psicose? Só o público tem a chave, só o publico tem a resposta dependendo se aceita jogar ou não aquele jogo. Felice e Claire só são personagens se tiverem um público que acredite neles.
“A Peça Para Dois Atores”, que se estreia esta quinta-feira, 27, no Teatro da Trindade, em Lisboa, pela mão do encenador Diogo Infante, é uma incursão no território do norte-americano Tennessee Williams, um dos dramaturgos mais importantes do século XX, autor de obras que se tornaram clássicos do teatro e do cinema, como “Um Eléctrico Chamado Desejo”, “Bruscamente no Verão Passado”, “A Noite da Iguana” ou “Doce Pássaro da Juventude”.
Protagonizado por Miguel Guilherme e Luísa Cruz, este drama em abismo é uma das composições tardias de Williams, escrita e reescrita entre internamentos psiquiátricos por abuso de álcool e drogas. Estreada em Londres, em 1967, esta obra de carácter autobiográfico representa também a tentativa de Williams sair do seu realismo lírico e se aproximar de um teatro mais experimental, mais próximo do que estavam a fazer Jean Genet, Samuel Beckett ou Harold Pinter.
“A Peça para Dois Actores” desenha-se então como teatro dentro do teatro ou meta-teatro. Aqui, todas as fronteiras entre realidade e ficção são apagadas sem deixar rasto, obrigando o público a cair, como as personagens, na vertigem da doença mental e, também como elas, a abandonar a segurança do pensamento lógico segundo o qual organizamos as nossas vidas e acreditamos estar protegidos da pobreza, da loucura, do caos, para mergulhar na irrealidade do real.
Diogo Infante contou ao Observador que “queria fazer esta peça desde os tempos de estudante no Conservatório” e que agora, “depois daquilo que o confinamento fez aos actores, do quanto trouxe à superfície a precariedade material e mental das suas vidas”, era a “altura ideal” para, finalmente, levar ao palco esta história, para a qual escolheu, propositadamente, dois actores com mais de sessenta anos, “uma idade em que se começa a enfrentar o declínio físico, a proximidade real da morte, uma fase que para os artistas é particularmente difícil”.
Também para Tennessee Williams esta peça representa também a sua luta contra o declínio. Depois de ter sido, nas décadas de 40 e 50, um exímio escritor de peças e contos de um nihilismo sufocante, onde se desenrolam vidas familiares concentracionárias, sexualmente castradoras e moralmente hipócritas, que atiram os homens e as mulheres para as margens da demência, do alcoolismo, da brutalidade. Onde as pessoas são esmagadas por uma realidade que não levou em conta os seus sonhos, os seus reais ou imaginados talentos, que lhes apagou precipitadamente a luz da juventude e o encanto, tudo vivido sob a atmosfera quente e saturada do Sul (de onde o próprio dramaturgo era originário). Quem pode esquecer Blanche DuBois de “Um Eléctrico Chamado Desejo”, a lutar até à loucura contra o envelhecimento?
Em “A Peça Para Dois Actores”, nunca é claro se os irmãos Claire e Felice já estão há presos num delírio psicótico e tudo o que vemos são farrapos de duas vidas que há muito perderam o contacto com a realidade. E não deixa de ser notável a forma como Tennessee Williams usa uma linguagem rarefeita, quase sem explicações, nem fatos, tudo balouçando entre a alucinação e o sonho para nos dar a dimensão da fragilidade mental dos dois irmãos. Ao longo de uma hora e vinte minutos, os atores vão da doçura aos gritos, da lucidez ao desvario, da ternura à crueldade em poucos segundos. Fazem-nos rir com as suas tentativas inábeis de estabelecer fronteiras no espaço e nas acções que os ajudem a separar a ilusão da realidade. Quem são afinal Claire e Felice? Dois atores sem trabalho ou dois loucos que fingem ser atores? Aquele pai e aquela mãe mortos pertencem à sua história pessoal ou à peça que dizem estar a representar? Que lugar é aquele? Um teatro decrépito ou um hospício?
Também ele filho de um pai brutal e com uma relação muito próxima com a sua irmã, Rose, esquizofrénica que viveu quase toda a sua vida em asilos psiquiátricos, Williams, ou “o pássaro” como lhe chamava Gore Vidal, outro brilhante escritor americano, viveu toda a vida subjugado a um sentimento de culpa por causa da sua homossexualidade, era profundamente hipocondríaco, sentia que a sua missão era “desmascarar a orgulhosa demência da sociedade americana que tanto o feriu”, escreve ainda Gore Vidal.
Quando morreu, em 1983, no Élysée Hotel de Nova Iorque, não de um dos muitos tumores que ele julgou ter, mas devido à asfixia provocada pela rolha de um frasco de comprimidos, “o pássaro” era um homem diminuído, e longe estava dos seus anos dourados, da sua américa sórdida e suada, como Marlon Brando tão bem encarnou na personagem do estivador Stanley Kowalsky em “Um Eléctrico…”. Porém, há algo inquietante e transversal à sua obra, inclusive a esta “Peça para Dois Actores”, e que Aníbal Fernandes, com a sua sageza habitual, notou no livro “O Festim da Aranha” (Assírio & Alvim): é recorrência da ideia da devoração. Seja a devoração canibal, a devoração sexual, a devoração pelo espaço ou pela demência, como acontece a Felice e a Claire os dois irmãos, presos para sempre no teatro de si mesmos. Mas não sermos todos nós uma versão de Felice e Claire?
“A Peça para Dois Actores”, fica em cena até 25 de junho, de 4ª a sábado, às 21h e ao domingo às 16h30 na sala Carmen Dolores no Teatro da Trindade, em Lisboa.