Escutam-se palmas, uma plateia em êxtase que aclama. À nossa frente, de costas para nós – como se virado estivesse para essa mesma multidão – um líder que vocifera palavras de ordem, um discurso sobre um “avançar, passo a passo, para um período novo de independência e construção”. Não estamos num tempo definido cronologicamente, embora partamos de um texto e de um contexto histórico conhecido. Somos parte dos bastidores, desse palanque discursivo, e parte da antecâmara onde se forja um novo líder político. Quer acabar com a decadência, impor novos valores, consolidar a riqueza cultural de uma pátria em ascensão. São estas as palavras, transformadas em doutrina, que iniciam “O Meu Amigo H.”, a nova peça da companhia Teatro Nacional 21, a partir de um texto do escritor japonês Yukio Mishima, coproduzida pel’A Oficina/CCVF e encenada por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu. Estreia-se em Guimarães, esta sexta-feira, dia 19 de maio.
Como espectadores, não saímos desse mesmo palco onde tudo se passa. Entre momentos de alguma acalmia e silêncio, de entrada e saída de algumas personagens, o foco mantém-se no discurso proferido que cresce em tensão e tom de raiva. “Desde que me tornei líder em janeiro do ano passado, os deuses confiaram-me o gabinete com a lealdade verdadeira ao nosso país e com uma missão”, diz H. Fala-se de democracia, de partidos políticos que, na visão deste líder, tudo fazem para regredir uma marcha em curso e de uma tarefa que lhe é divinamente entregue. Fala-se também de futuro e da força de um exército que pode consolidar um novo regime, devidamente musculado, pronto para a guerra, num Blitzkrieg iminente pelo qual anseia toda uma geração enraivecida e marginalizada pelos restantes países. Os elementos históricos estão bem patentes: à nossa frente está o ditador alemão Adolf Hitler; estamos em 1934, nos dias que marcam um acontecimento conhecido por “Noite das Facas Longas”, mas aquilo que o novo espetáculo da companhia quer abordar ultrapassa esse mesmo marco histórico.
Numa viagem entre o passado e o presente da democracia, Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu debruçaram-se sobre o texto do escritor japonês de Yukio Mishima, que lhes foi sugerido por Ricardo Braun (também responsável pela dramaturgia). Em palco estão os atores Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes e Virgílio Castelo, um desenho de luz de Rui Monteiro, a música de Carincur e vídeo de João Pedro Fonseca. O autor do texto original é reconhecidamente polémico pelas posições que tomou em vida, apoiante de um nacionalismo nipónico que o levaria inclusive a uma tentativa falhada de golpe de Estado no seu país, a 25 de novembro de 1970, e que terminaria com o seu suicídio, através de um ritual conhecido por seppuku, vulgarmente conhecido no ocidente por haraquíri.
Politicamente, Mishima estava próximo das ideias de Hitler, tendo dito, no entanto, que a inspiração para escrever O meu amigo Hitler (assim se chama o texto original) surgiu a partir do assassinato de Ernst Roehm descrito em Alan Bullock’s Hitler: A study of Tyranny, publicado em 1952 – a primeira biografia do ditador que se serviu de documentos alemães capturados, produzidos em Nuremberga. Roehm foi uma das vítimas de uma série de assassinatos perpetrados sob ordens do então chanceler do Reich. Foi um período de limpeza dentro do Partido Nazi, que permitiu a Hitler consolidar a sua posição inequívoca de líder e avançar com aquilo que se tornaria no holocausto e a Segunda Guerra Mundial.
Para o efeito cénico e dramatúrgico desta peça, as três personagens verídicas que dialogam com Hitler (além de Roehm, há George Strasser e Gustav Krupp) tornaram-se anónimas, bem como o próprio líder. “É a primeira vez que este texto é feito em Portugal, mas naquilo que se pretendia transmitir achámos por bem limpá-lo de alguma forma, para que não estivesse completamente desligado do facto histórico, mas que também pudesse incluir a realidade presente do século XXI”, explica ao Observador Cláudia Lucas Chéu. Partiram para esse percurso, retirando então as referências de datas e outros apontamentos históricos, mas com convicção de que “a peça mantém essa ideia de nova ordem, que é na verdade uma velha ordem, e que se passa hoje em muitos países do mundo – sobretudo nos movimentos populistas”. “Há um voltar a esses ideais perdidos, como se fala, num movimento reacionário, mascarado de progressista e isso interessa-nos porque é algo que está a acontecer no mundo de forma bastante disseminada”, sustenta a encenadora.
A consolidação de poder
De forma populista e com o intuito de neutralizar as diferentes forças de oposição, “O Meu Amigo H.” – peça dividida em três atos – constrói-se sob uma lógica de tensão que vai aumentando. H. tem a possibilidade de aumentar ainda mais o seu poder: o presidente atual está às portas da morte e, com o apoio das Forças Armadas, este pode suceder-lhe, acumulando os dois cargos. Mas há pináculos por colocar no devido lugar, neste caso representados por três homens com quem se estabelece um diálogo: um capitalista, um militar e um sindicalista. É preciso fazer manutenção para se manter no poder, daí o surgimento destas personagens que não são totalmente descartáveis para o líder. “São estereótipos para jogarmos com esta ideia de que nada é fixo, que tudo é moldável e que nesta esfera há uma vibração humana e uma fragilidade, sobretudo pela ideia de que a democracia depende da escuta”, sintetiza ao Observador Albano Jerónimo.
Os dois encenadores corroboram a ideia de que há neste texto um alerta, pela forma como certas figuras políticas tentam consolidar o seu poder dentro das estruturas partidárias, mas também junto da opinião pública. “É um perigo que estamos hoje a viver”, diz Cláudia Lucas Chéu. “A verdade é que os temas de que fala o texto não se podem dissociar dos tempos que estamos a viver. Estes movimentos extremados, sejam de esquerda ou de direita, precipitam esta preocupação latente de querermos falar para e com as pessoas”, acrescenta Albano Jerónimo. Na sua desenvoltura narrativa, o que vamos assistindo durante a peça é a chegada de uma nova fase para o regime em construção. H. quer reforçar o seu poder. Sabe que pode precisar do exército, liderado pelo militar, da influência do capitalista e da proximidade do sindicalista para controlar as massas populares e trabalhadoras, que podem facilmente cair em descrença. Metaforicamente H. pede para que lhe seja feito uma camisa de forças em ferro, mas há quem não acredite que está pronto para isso.
Olho por olho, dente por dente
Cresce a ambiguidade na forma como H. se relaciona com os diferentes intervenientes. O militar e o sindicalista tanto parecem querer aproximar-se do líder, como conspiram contra este. Reina um calculismo frio que se revela igualmente numa estética homoerótica e de uma masculinidade construída numa ideia de poder conquistado. Esta camada acaba por ser especialmente importante no texto do Mishima: “Todos estes jogos precisam de pele e de corpo e o Mishima tem uma obra em que este homoerotismo acaba por ser transversal, mas nesta peça acaba por ser uma provocação e uma intimidade que existe entre estas pessoas, mesmo na esfera do poder”, sublinha Albano Jerónimo
O corpo é uma arma e para o líder há que tomar decisões, mesmo que isso contribua para um desfecho trágico para alguns destes seus “camaradas” e contribuidores na sua própria ascensão. Resta saber quem sobrevive no fim destes jogos internos. Que lados se eliminam, à esquerda e direita do líder, para que a sobrevivência das suas ideias se torne num fio condutor – mantendo o capital satisfeito. As dupla de encenadores lança assim um mote de reflexão: “queremos que toda a gente tenha noção de que é este o momento que estamos a atravessar”. Tal como no passado, os líderes, explica Lucas Chéu ficam muitas vezes obcecados com o seu poder. Por seu lado, Albano Jerónimo trata-se um mecanismo, que tem as suas falhas e quebras, mas que não deixa de ser posto em prática na atualidade. “São humanos e teatrais ao mesmo tempo, onde há esta espécie de encantamento que coloca a questão: até onde é que estás disposto a ir para fazer essa transformação?.”
No teatro, tal como na política, a performance, as palavras ditas, mas também os silêncios refletem um modus operandi que neste espetáculo evidenciam também a forma como são muitas vezes as pessoas (neste caso, os espetadores) que acabam por contribuir para a afirmação destes discursos. “O que vemos, em muitos casos, é que no princípio estes líderes nem têm noção de até que ponto é que estão dispostos a ir, nem algumas das coisas que vão dizer e fazer para se afirmarem”, acrescenta a encenadora.
Há uma entourage sobre a qual se acabam por estabelecer regras e padrões que, no fim do dia, podem contribuir para a destruição da democracia. “E por detrás destes bastidores, há sempre um conjunto de pessoas, algumas ligadas ao poder económico, que solidificam toda esta força e uma forma de fazer política”, diz Albano Jerónimo. Entre o branqueamento e os próprios programas dos partidos, é na reflexão e no questionamento que subsiste uma esperança na manutenção da democracia. As peças estão no sítio e é fácil cair na tentação, refletem os encenadores. Além disso, todos nós somos parte do púlpito, resta saber se mantemos ativa a nossa capacidade de vigiar e condenar “os nossos amigos” – possíveis futuros líderes – que atentam contra a liberdade e a democracia, para que a história não se repita uma vez mais.