Barack Obama é, de onde quer que se olhe, uma figura fascinante. Independentemente do nosso posicionamento político, não podemos contestar o magnetismo da personagem, o extraordinário caso de comunicação, o feito de – e este tem mesmo de pairar acima de qualquer partidarismo – ter sido um Presidente negro na América, a mesma América que só há pouco mais de 50 anos deu aos cidadãos negros o direito de votar. E ainda melhor: um Presidente negro na América que, quatro anos depois, foi reeleito.
Mas além disso. O trajeto de Obama pós-Presidência é ainda mais interessante. Não ficando para o mundo dos facilitadores de negócios nem para o dos santos em vida (sumidades que, de vez em quando, aparecem, como oráculos, póstumos a si mesmos), nem se cingindo ao lucrativo circuito das conferências, Obama decidiu exercer o seu soft power no mundo real. Como se reconhecesse no cidadão comum o maior dos influenciadores. E talvez – talvez – não esteja errado.
Queremos com isto dizer que vale muito a pena acompanhar as intervenções que tem tido na cultura popular recente, do podcast (e, depois, livro) “Renegades”, com Bruce Springsteen – que, antes, lhe compusera o hino para a primeira corrida eleitoral –, à extraordinária entrevista a David Letterman em “My Next Guest Needs No Introduction” (a conversa em “Conan O’Brien Needs a Friend” já não é tão interessante. Aí, recomendamos mais – e vivamente, aliás – as já várias participações de Michelle Obama), em que se confirma como um líder de pensamento sobre o nosso tempo, liberto agora, ainda por cima, da obrigação de agradar.
[o trailer de “Trabalho: O Que Fazemos o Dia Todo”:]
(Claro que isto depende da sua convicção, caro leitor: daquela que acredite ser a agenda de Obama. Pessoalmente, acredito que nem ele nem Michelle têm qualquer interesse em regressar à Casa Branca – ele, aliás, porque a Constituição lho proíbe; ela porque lho proibiria a ele, caso a Constituição não o fizesse.)
“Trabalho – O que Fazemos o Dia Todo” (“Working – What We Do All Day”) é uma minissérie documental de quatro episódios que já está na Netflix, produzida pela Higher Ground, de Michelle e Barack Obama, e apresentada pelo segundo, e representa talvez a vertente mais consistente e importante do trabalho público do casal depois da Presidência: uma reflexão sobre o lugar do trabalho nas nossas vidas e as transformações que está a sofrer. Já em 2019, tinham impulsionado até à vitória do Óscar para melhor documentário o excelente “Uma Fábrica Americana”, acerca do choque cultural resultante das aquisições chinesas no tecido industrial americano. Agora, vão mais longe e de forma mais pessoalmente comprometida, numa reflexão em que milhões de trabalhadores pelo mundo inteiro não encontrarão dificuldade em se rever.
“Trabalho” / “Working” parte de um ponto interessante para outro: porque é que, a determinado momento, deixámos de contar histórias sobre pessoas comuns, em que os heróis eram de classe baixa ou, quando muito, média, e passámos a deslumbrar-nos com séries e filmes, novelas e reality shows sobre gente rica? Quanto mais rica, inacessível, exclusiva, melhor? Quando, na realidade, nunca, como agora, o trabalho foi uma parte tão grande das nossas vidas. Quando passámos da geração dos nossos pais ou avós, em que o trabalho servia para ganhar o dinheiro que nos pagasse as contas, para a nossa ou a dos nossos filhos, em que o trabalho tem de ter “um propósito”, um sentido, tem de nos satisfazer – melhor: realizar.
Na realidade, como perspetiva o título, trabalho é o que fazemos o dia inteiro – isto é: é aquilo que fazemos da vida e com a vida. Independentemente de todos os lirismos e escapismos que possamos buscar. O trabalho que fazemos vai ser aquilo que vai ocupar a maior parte do nosso tempo passado acordados aqui na Terra – e até prova em contrário, esse é mesmo todo o tempo que temos.
Selecionando criteriosamente apenas três setores – apoio social, hotelaria e tecnologia – Barack Obama percorre cada um deles da base ao topo da pirâmide: prestadores de serviços no primeiro episódio; classe média no segundo; empregos de sonho, aqueles que ocupam a luxuosa franja dos 9% que se saldam entre o 1% que ganha tanto quanto 90% e os ditos 90%, no terceiro; e, finalmente, os patrões. Isto é, vamos do condutor do Uber ao mogul da tecnológica. Da senhora que faz a cama no hotel, ao patrão da gigante Tata, dona de mil e uma coisas, incluindo aquele negócio. Passando por funcionários e gerentes, empreendedores e senadores. E nisto, traçar um retrato simultaneamente despretensioso e muito eloquente do mundo do trabalho hoje.
Quando todos sonhámos ser outra coisa qualquer, um robô ameaça o nosso posto de trabalho, palpita o medo perante o desaparecimento do mundo como o conhecíamos e agita a incerteza em relação ao que virá. Em que alpendre poderemos, enfim, descansar as costas, quando tivermos cumprido os nossos anos de serviço à pátria e à idade adulta. Uma reflexão sóbria e pertinente, sem deslumbres nem alarmismos. Muito recomendável.