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Chico mostrou-se na sua fineza para nos salvar com mais um samba

Este artigo tem mais de 6 meses

O primeiro de 5 concertos de Chico Buarque em Portugal foi tudo o que esperávamos: um samba bom para afastar tempos feios. A roda segue mais uma noite no Porto e nos dias 1, 2 e 3 de junho em Lisboa.

Chico garantiu que tocava tudo “direitinho”, mas às vezes esqueço um pedaço de letra”. Pensou pedir um teleponto para o ajudar, “mas aí iam dizer que o sujeito não era o compositor destas músicas”
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Chico garantiu que tocava tudo “direitinho”, mas às vezes esqueço um pedaço de letra”. Pensou pedir um teleponto para o ajudar, “mas aí iam dizer que o sujeito não era o compositor destas músicas”

Rui Oliveira/Observador

Chico garantiu que tocava tudo “direitinho”, mas às vezes esqueço um pedaço de letra”. Pensou pedir um teleponto para o ajudar, “mas aí iam dizer que o sujeito não era o compositor destas músicas”

Rui Oliveira/Observador

Vendo tanto mar diante de si, desde a sua ocidental ilha das Flores, o poeta Pedro da Silveira dedicou um poema às palavras: Que ninguém lhes toque / se as não sabe amar / como os vivos amam, / VIOLENTAMENTE. Chico Buarque sempre as amou desmedidamente. Cada palavra, na sua escrita e na sua voz, tem um peso preciso. Tem música, gravidade e pausa. Ele as cuida como o jardineiro que rega as suas flores, sabendo que, embora já escritas, já plantadas num cancioneiro de mais de cinco décadas, elas continuam a mudar as suas pétalas com as estações.

Assim se entende que em março deste ano, já com a digressão “Que tal um samba?” em marcha desde setembro de 2022, Chico se tenha acercado de “Beatriz” para lhe alterar uma palavra: o verso “será que é divina a vida da atriz” passou a ser cantado “será que é divina a sina da atriz.” Um novo botão de rosa germinou, deste modo singelo, numa letra de 1983.

“Beatriz”, musa de Dante Alighieri, foi dos primeiros temas a entrar no alinhamento do primeiro de cinco concertos que Chico Buarque dará por estes dias em Portugal. Nesse momento, o compositor popular ainda se escondia por detrás das cortinas para oferecer o palco a Mônica Salmaso, que bem enfatizou as sílabas de siiii-na, torneando violentamente cada curva do seu dizer. “Aqui quem vos fala é a Cinderela”, disse, dirigindo-se ao público que enchia a Super Bock Arena, no Porto, mostrando como se sentia uma princesa improvável no conto de fadas que é para ela acompanhar Chico Buarque na digressão de Que tal um samba?.

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As boas-vindas foram dadas com “Todos juntos”, da banda sonora da peça infantil “Os Saltimbancos”. Tocada daquele modo, apenas com o piano de João Rebouças e o ikembe que Mônica Salmaso trazia nas mãos, parecia mesmo música de criança, ridículo até, como ridícula é a necessidade de alguém nos lembrar, amiúde, das coisas mais elementares da humanidade: todos juntos somos fortes e ao nosso lado há sempre um amigo que é preciso proteger.

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Seguiu-se “Mar e Lua”, do álbum Vida (1980) e “Passaredo”, composição que Francis Hime passou a Chico para nela ele incluir toda a espécie de aves nativas brasileiras e o horror que era estar de bico calado, num tempo em que os dentes da ditadura abocanhavam todos os que ousassem voar livremente. Mas Chico Buarque, que chegou a assinar como Julinho da Adelaide para zoar dos censores, sempre soube disfarçar o cansaço no seu samba. O “Bom Tempo”, dissera-lhe um passarinho, com a flauta transversal de Marcelo Bernardes a simular o seu piar e a tocar levemente a melodia de “A Banda”, estava a chegar.

Chegando discreto por trás das percussões de Chico Batera, que pareciam multiplicar-se à medida que o concerto avançava, Chico Buarque apareceu em palco, por fim, na última estrofe de “Paratodos”, que é também prosa no discurso que professara no Palácio de Queluz, aquando da cerimónia do Prémio Camões, no passado dia 24 de abril: O meu pai era paulista / Meu avô, pernambucano / O meu bisavô, mineiro / Meu tataravô, baiano. Ele é um artista brasileiro que já correu muita estrada. É “O Velho Francisco”, cantando com sorriso de menino, do início ao fim do espetáculo.

Em “Sinhá”, composição de João Bosco que nos leva para as roças brasileiras, onde o chicote do senhor de engenho da cana do açúcar era a amarga chaga nas costas do escravo, Chico lembrou Vinícius, não o poeta diplomata, mas o poeta da bola que recentemente levou com uma vergastada de racismo em pleno relvado do Mestalla. “Esta canção vai para Vini Jr.”, dedicou, não em mono, mas em stereo para todos os ouvidos escutarem os harmónicos urgentes daquela mensagem. Às vezes é preciso zerar o jogo, limpar a ficha, e começar de novo.

Rui Oliveira/Observador

“Sem fantasia” fez as luzes mudarem do vermelho da terra quente da roça para o azul de um amor dolente. Salmaso não é Bethânia, ela sabe disso, mas nem por um instante se intimidou neste dueto. Aliás, em todas as canções que partilhou com Chico, Mônica não foi apenas a sua base. Ela se envolveu quente em cada interpretação, sabendo quando devia encher o peito ou murmurar as notas; quando se devia fazer séria ou brincar com as métricas, como aconteceu com “Biscate”, gravada originalmente com Gal Costa, no álbum Paratodos (1993).

Gal haveria de voltar em “Mil perdões”, que valeu a projeção de uma foto da sua cabeleira farta e dos seus olhos de índia no fundo do palco. Cada tema tinha a sua respetiva projeção, mas do camarote onde estávamos não as conseguimos ver. Um pormenor a lamentar, se formos a crer que, à semelhança da digressão brasileira, deverão ter passado fotografias de Sebastião Salgado e de Thereza Eugênia e outros tantos jogos de formas e de cores idealizadas por Daniela Thomas. Helio Eichbauer, cenógrafo de Chico Buarque de sempre, que morreu em 2018, ficaria certamente contente ao ver o seu legado tão bem estimado.

“Imagina” foi o beijo de despedida de Mônica Salmaso. Ela regressaria mais à frente, com o seu vestido comprido azul petróleo. Mas antes, Chico precisava de se sentar e de um técnico que lhe desse um violão para as mãos para ele tocar “Choro Bandido”. Luiz Cláudio Ramos, arranjista de fineza buarquiana, mestre da contenção como Ahmad Jamal, deu os primeiros acordes até Chico se acomodar e se declarar falso cantor de canções bonitas. Seguiu-se “Sob Medida” e “Bastidores”, com guitarra blues e o verso “jamais cantei tão lindo assim” a ser soprado primorosamente pela flauta transversal.

Um tamborim aqui, um dedilhado acolá, uma escala que surge sem aviso, uma batida sincopada baralhando o tempo certo. Ver um concerto de Chico Buarque é saborear a subtileza do detalhe, vírgula precisa, cadência suave que enche a vida de poesia. Nenhuma transição é fruto do acaso e isso se deve, em grande parte, à cumplicidade dos excelentes músicos que acompanham Chico Buarque há vários discos.

Jorge Helder, Bia Paes Leme, Jurim Moreira (herdeiro na bateria do mestre Wilson das Neves), João Rebouças, Chico Batera, Marcelo Bernandes e Luiz Cláudio Ramos sabem ler Chico nas entrelinhas, inflamando-lhe e esmagando-lhe cada respiração no momento exato, tal e qual fole de acordeão. “Tipo um baião” de Gonzaga.

Rui Oliveira/Observador

O público, parecendo entender esta cumplicidade, mostrou-se igualmente contido, mas nem por isso amorfo. Quando foi preciso cantar “mentira” em “Samba do grande amor”, ouviu-se um coro a ecoar no pavilhão, que já foi Rosa Mota antes de ter nome de cerveja, que, segundo Wagner Homem, citando Chico Buarque, é a bebida certa para acompanhar o samba “Injuriado”.

“As minhas meninas”, sendo só suas, deixaram Chico a cantar sozinho, para logo entrar o piano, o clarinete e uma passagem direta para “Uma canção desnaturada”. Neste ponto do concerto, com uma vintena de músicas já desfiladas e a “Morro dois irmãos” a se anunciar, alguém na plateia sentiu-se com coragem para gritar um “Lindo”.

“Futuros Amantes” pôs Chico a assobiar, “Assentamento” deixou-nos cansados de tanta guerra, e “Bancarrota Blues” trouxe o único recado explicitamente político — e o discurso mais longo – da noite. Já depois de apresentar a banda, Chico Buarque confessou que, para esta digressão, teve que “caprichar muito” para acompanhar condignamente Mônica Salmaso.

Ele achava que estava a tocar ao nível de Baden Powell, Luiz Cláudio Ramos via-o mais como Jimi Hendrix. Bate papo à parte, Chico garantiu que tocava tudo “direitinho”, mas às vezes esqueço um pedaço de letra”. Pensou pedir um teleponto para o ajudar, “mas aí iam dizer que o sujeito não era o compositor destas músicas”, atirou com sarcasmo, aludindo à juíza Monica Ribeiro Teixeira que, em tribunal, duvidou que Chico fosse o autor de “Roda Viva”, num processo do compositor contra Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente do Brasil. “Podem dizer que sou esquerda caviar, agora dizer que eu compro música, eu não vou admitir”. Bruaá geral do público e siga para bingo, com “Todo o Sentimento”, que ainda havia muitas canções à espera no reportório.

Rui Oliveira/Observador

A tríade pré-encore foi entregue a “O meu guri”, tema popularizado na voz de Elza Soares, mulher do fim do mundo que nos deixou em 2022; “As caravanas”, faixa-título do último álbum de originais de Chico Buarque, mostrou-se intercalada com “Deus lhe pague”; e “Que tal um samba?”, a canção que envolve esta digressão de coluna ereta, saída do fundo do poço da ignorância e da força bruta, arrancou palmas do público e pôs o bandolim de Hamilton de Holanda nos dedos de Jorge Helder.

Só mesmo quem é ruim da cabeça ou doente do pé é que não sabe que samba é remédio que cura, como também não saberá que para se fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza. Chico, Vinicius de Moraes, apregoando o seu “Samba da Bênção” e Dorival Caymmi, trazendo o “Samba da minha terra”, os três juntos nesta reta final.

“Obrigado Porto”, atirou Chico Buarque, chegando-se à frente do palco ao lado de Mônica Salmaso, sina de ator e atriz agradecendo as ovações ruidosas de fim de espetáculo. Ainda viria “Maninha”, que a irmã Miucha adoraria cantar naquele palco, nota Chico, já de voz rouca; “Noite dos mascarados”, deixando em delírio as primeiras filas, que bailavam e se consumavam no ato de amor em que o concerto se tornou; o inevitável cheirinho a alecrim de “Tanto Mar”, pondo toda a gente a celebrar a liberdade como se ela tivesse sido conquistada naquela noite; e “João e Maria”, música que não era nascida no tempo da maldade, fechando o concerto com chave de ouro.

A beleza arranja sempre um jeito de se manifestar, mesmo nos tempos em que o tempo parece andar para trás e dá uma dor filha da puta no peito que só apetece atirar a toalha ao chão. No coração de Chico, porém, continua a bater a malandragem do samba, ele que passou a vida pintando camisetas de tricolor e amando violentamente cada palavra, com açúcar e com afeto. Um poeta, como um cego, verá sempre na escuridão. Que os seus olhos sejam os nossos novamente hoje, no Porto (27 maio), e no Campo Pequeno, em Lisboa, nos dias 1, 2 e 3 de junho. Saravá, Velho Francisco.

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