Fiel ao espírito de especialização que caracteriza a nossa época, namoro há tempos a ideia de adaptar as Metamorfoses de Ovídio. A obra chamar-se-á Metamorfoses — on the pitch. Já tem capa: em vez de Io a tornar-se vaca perante a fúria de Hera e o olhar castiço de Zeus, trará um banal escritório à esquerda e um pavilhão multiusos à direita. Um cenário enigmático, de propósito, a piscar o olho à curiosidade do leitor.

Versará sobre um fenómeno infelizmente descurado na literatura contemporânea, que se manifesta por exemplo na rapidez com que aquele rapaz calmo lá do trabalho, o Carlos da secretaria, renasce em vitoriosa fera logo que salta para dentro das quatro linhas; ou, em sentido inverso, no modo como a autoritária Rosana, que costuma exibir a auto-confiança de um comboio sem travões, fica muda e trapalhona quando participa na peladinha familiar com os sobrinhos. Embora a ideia seja apresentar um considerável espectro de figuras — unidas, todas elas, pelo facto de haver uma cisão absoluta entre o eu quotidiano e o eu desportivo — a personagem principal do livro não poderá senão ser o meu velho camarada José Macedo.

Uma rápida busca no Google esclarece-me que é agora professor numa reputada instituição do ensino superior, doutorado numa daquelas engenharias complicadas do Técnico. Não surpreende. Era expectável que se saísse bem na “esfera profissional”, dada a sua inteligência e aplicação nos estudos. Além do acertado perfil académico, caracterizava-o uma agradável suavidade no trato, uma imaculada correcção de modos. Era a brandura em pessoa.

Esse jeito pacato de ser tornara-se mesmo proverbial entre nós, os seus amigos. Se ouvíssemos outro dizer de alguém “Ele é tão macedo”, não estranharíamos a formulação: era óbvio que se tratava de um sujeito incapaz de levantar ondas ou sobressair de forma estridente nas encruzilhadas da vida. No entanto, tal temperamento, que reinava sobre o Macedo habitual como Ramsés II sobre o Egipto, conhecia surpreendentes intervalos periódicos. Logo que começava o treino de andebol ou o jogo que domingo após domingo marcava o ponto alto da semana, este discreto adolescente metamorfoseava-se num ícone do star-system internacional, de tendências agressivas e autoridade sobre-humana.

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No primeiro treino, teriam passado uns dez minutos quando a trave da baliza ribombou devido a um estouro saído da sua mão e vimos a bola executar uma demorada viagem de regresso pelos céus do recinto, exclamando no nosso íntimo: “Macedo?!” Essa surpresa, que nos apressámos a julgar fruto do acaso, foi apenas o princípio de uma sucessão de surpresas, que ao longo dos anos muitas vezes nos deixariam o queixo no chão. Vê-lo rugir ao marcar um golo — ele que ficava vermelho de vergonha se alguém contava uma anedota! —, vê-lo açoitar os adversários em impiedosas marcações homem-a-homem, era mais do que desconcertante; era a descoberta da falência de todos os pressupostos cognitivos em que assenta a catalogação espontânea de um indivíduo.

Como qualquer Clark Kent que se preze, a transformação do Macedo passava pela indumentária. Retrospectivamente, é fácil notar que era no balneário que tudo começava, ao despir as vestes de homem comum e assumir o traje de mortífero lateral-direito. O six-pack abdominal, surgindo sorrateiro debaixo da t-shirt, tinha a força de um indício. O vestir da joelheira e o calçar das Gazelle azul-clarinho avançavam para cerca de 35% o loading daquele pontual processo metamórfico. Mas eram os óculos de desporto — lentes aerodinâmicas, armação transparente, acomodados à cabeça por uma banda elástica negra — que consumavam a irrupção de um novo ser, talhado para altas glórias de pavilhão.

Este pormenor dos óculos merecerá particular atenção na obra em apreço. É que, de entre os treze ou catorze jogadores da equipa, qualquer análise psicológica, mormente com recurso a verificação dos i) SMS enviados a raparigas e do ii) padrão comportamental nas noites de sexta-feira, concluiria que ele era o menos propenso a ser o Edgar Davids do andebol nacional. No entanto, factos são factos, e o único membro que reunia em si aquela mistura de garra, técnica e estilo oftalmológico eternizada pelo craque holandês era mesmo o Macedo. Ao pôr os óculos, subitamente apetrechado de uma nova visão da vida, era também um novo modo de estar-no-mundo que se apossava do nosso companheiro. E que modo.

Se na defesa exibia uma agressividade nos antípodas da placidez que o definia, no ataque era a poesia quase excessiva dos movimentos que espantava. Serpentino a esquivar-se entre o lateral e o ponta adversários, dotado de um jogo de ombros que produzia tonturas em quem o tentasse defender, tinha um remate que, mais do que andebol, fazia pensar noutros desportos de elegância superior. Um put tiger-woodiano, uma direita à la Federer, fazendo a bola traçar diagonais impossíveis para os guarda-redes: eis descrições possíveis desses pessoalíssimos balázios com que o Macedo furava tudo o que fosse rede alheia.

A sua habilidade mais espectacular — capaz de unir os perfeitos desconhecidos da bancada num coro de “oh!”s admirativos — era a basculação. Basculação é o nome dado a esse movimento de difícil execução que consiste em saltar para dentro de maneira a ganhar ângulo sem, entretanto, perder nos ares a força e a precisão necessárias para marcar golo. Ora, o Macedo basculava com a naturalidade com que outros vão comprar legumes ou bilhetes de metro. O ombro esquerdo quase rasava o chão, enquanto o braço direito — durante dois segundos suspenso numa posição semelhante à da criança que faz músculos — logo se estirava com ímpeto furioso de chicote. Por muito diminuto que fosse o ângulo no momento de as sapatilhas azuis descolarem, o final não variava: mais uma bola para o grandalhão ir buscar lá dentro.

Assim era José Macedo, o rapaz apagado que incendiou o andebol nacional há duas décadas e jaz agora, com paciência de morto, na gaveta dos meus tímidos “Eureka!” literários. Mas não existem por aí tantos outros seres do mesmo género, cuja identidade se transforma mal soa o apito inicial de um jogo qualquer? É material em abundância para o artista atento. E, permitam-me acrescentar, um capítulo não tão despiciendo assim na história dos homens.